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Colunas

Olho por olho?

Um pai que tentava levar seu filho, de 9 anos, para uma cirurgia oftalmológica é barrado por manifestantes antidemocráticos que bloqueavam a passagem da rodovia BR-364, em Sorriso (MT). Em vídeo que circula nas redes sociais, o pai, aflito, se exalta após manifestantes dizerem que não se importam se seu filho ficar cego. LINK


Muito difícil não querer encher essa gente de porrada, mas quase sempre o certo é difícil mesmo. Desfavor da Semana.

SALLY

Esta semana continuaram aparecendo ações bizarras vindas de pessoas descontentes com o resultado das eleições. E eu não digo “bizarras” por elitismo intelectual ou implicância, estamos falando de coisas que realmente estão muito além do aceitável: desde se reunir e enviar sinais para o céu para que alienígenas interfiram até bloquear a passagem de pessoas que precisavam de atendimento médico e foram privadas disso.

Já falamos em textos anteriores que é preciso revisar a forma como lidamos com essas pessoas: elas são muitas e elas estão cada vez mais extremistas. Pois bem, hoje vamos aprofundar o assunto. Não existe uma única categoria como muitos colocam: “bolsonaristas”.

No meio desse grupo, tem de tudo: desde a tia do zap que acredita no que escuta e acha estar fazendo o melhor para o país até o filho da puta que sabe que vacinas salvam vidas, mas, como recebe 10k por mês para falar mal da vacina em seu perfil, mete o malho e manda as pessoas não tomarem, enquanto ele e sua família estão todos vacinados.

Não dá para tratar todo mundo igual, pois são realidades muito diferentes. É como querer educar um cão e um gato da mesma forma: um dos dois vai acabar não absorvendo absolutamente nada e ficando ainda pior.

Vamos começar pelos ignorantes, aqueles que realmente acham que tudo que recebem é verdade e que estão tentando salvar o país. Eles dão raiva, pois mantém uma postura arrogante, de autoridade e batem boca até com especialistas de uma área que desconhecem. Qual é a vontade? Pegar um tijolo e dar na boca, quebrando todos os dentinhos. Não vou posar de superior, eu sinto isso também. Mas eu sei que não é legal, não resolve e não deve ser feito.

É muito fácil dizer que tem que enfiar a porrada em todo mundo, assim as pessoas terão medo de fazer uma merda dessas novamente. É uma resposta simples, é uma resposta fácil e satisfaz nossos instintos mais primitivos de eliminar do bando o que julgamos ser o elo mais fraco, que pode comprometer a sobrevivência da espécie. Mas, não somos mais pessoas das cavernas e hostilizar, além de não resolver, só piora a situação.

Dá vontade? Dá vontade. Dá muita vontade. Mas assim como um hipertenso não deve comer uma comida excessivamente salgada mesmo que tenha vontade, as pessoas mentalmente sãs não devem querer deitar na porrada imbecil que fecha a rua e pede por ajuda de alienígena. O motivo é bem simples: foi a exclusão, em primeira instância, quem jogou essas pessoas por esse caminho.

Isso vale para muitos grupos. Anos atrás, quando fizemos um texto sobre terraplanismo, já alertávamos sobre isso: quando você cria nichos de intelectuais (seja na ciência, na política ou em qualquer lugar) e exclui um grupo grande de pessoas, gera uma reação.

Ninguém gosta de ser excluído e, com a internet, os excluídos podem se juntar e formar seu próprio grupo, para se sentirem aceitos, para conseguirem uma sensação de pertinência e para falarem livremente uns com os outros sem serem criticados ou ridicularizados.

Então, quanto mais a gente hostiliza, mais essas pessoas vão se reunir nos guetos das redes sociais e formar um grupo separado. O plot twist é: quem vocês acham que é maioria no Brasil, pessoas cultas, inteligentes e com conhecimento científico ou o oposto disso? Pois é. Não convém quem um grupo maior se una contra, não é mesmo?

Óbvio que se qualquer pessoa violar a lei, ela deverá sofrer a punição prevista. Não é para passar a mão na cabeça. Mas não precisa ficar escrotizando a pessoa em público, pisando, humilhando, chamando de burra, idiota e simulares. Acredite, ninguém ganha nada com isso, só o seu ego, que tem uma satisfação temporária que, no final das contas, será muito prejudicial no futuro.

Com os filhos da puta, a vontade de resolver na porrada é ainda maior. Pessoas que exploram a insegurança e a exclusão alheia para ganhar dinheiro e fama são simplesmente desprezíveis. Mas, novamente, hostilizar não é a solução: acaba fazendo desses filhos da puta heróis, mártires ou vítimas. Para os filhos da puta, apenas lei.

Não é um consolo, pois no Brasil a lei é falha, mas a solução não é ignorar a lei, é melhorar a lei e o sistema jurídico. Muito trabalho, né? Pois é. Arrumar um país que está uma zona dá muito trabalho mesmo.

E agora, a questão crucial: como saber se é um ignorante ou filho da puta? (ou ambos). Complicado. Para começo de conversa, tem que tentar ter um olhar sem raiva, já que raiva cega e nos faz pensar que todos são filhos da puta para justificar nossos pensamentos de raiva (que nunca sugerem fazer algo bondoso com o outro). Depois, observar o entorno, a fala e os atos.

Quando a fala está alinhada com os atos, é mais provável que seja um ignorante. Ex: fica dizendo aos quatro cantos que a vacina é experimental e não se vacinou. Mas quando a fala é uma e os atos são outros, é mais provável que seja um filho da puta. Ex: fica dizendo que a vacina é experimental, mas tomou vacina e levou os pais e os filhos para se vacinarem.

Para os ignorantes, uma mão estendida, inclusão, respeito (mas se infringirem a lei, também a punição). É a única forma de trazê-los de volta desse buraco negro. Para os filhos da puta, apenas a lei. E, para as próximas gerações, inclusão, tolerância e informação, para que nunca sejam sugadas para esse buraco negro.

Hora de democratizar a ciência, a informação, a cultura. Hora de deixar essa escrotidão intelectualóide inacessível da esquerda de lado, pois é isso que cria essa direita maluca e neurótica. Hora de acabar com o elitismo e divisão. Informação, simples, gratuita, acessível e apresentada de forma atraente para todos. Só isso reverte esse quadro para as próximas gerações.

Vai acontecer? Provavelmente não. Mas nada te impede de fazer a sua parte. Em todo caso, apertem os cintos, pois os excluídos são maioria e tem eleição a cada quatro anos. Na próxima pode ser que eles sejam maioria no Congresso e ocupem a Presidência.

E, mesmo que isso não aconteça, essas pessoas impactam sua realidade. Muitos desses desempoderados que acreditam em intervenção sideral são prestadores de serviço que vão impactar sua vida e a da sua família. É urgente resgatar essas pessoas.

Para dizer que prefere continuar ridicularizado, para dizer que essas pessoas são irresgatáveis (o que você está fazendo em um país com maioria irresgatável?) ou ainda para dizer que somos cadelinhas do Bill Gates: sally@desfavor.com

SOMIR

O espírito do nosso tempo usa bastante a expressão “passar pano”. No sentido original era um passo além de outra expressão comum: “fazer vistas grossas”. Fazia vistas grossas quem ignorava os problemas que deveria estar vendo, passava pano quem ia um pouco adiante e começava a achar desculpas e justificativas para o problema.

Mas o tempo passou e a internet aumentou a gravidade da maioria das nossas expressões. Amar virou sinônimo de gostar, depressão é o nome que se dá para qualquer tristeza… e até mesmo a ideia do que seria passar pano radicalizou. Agora é sinônimo de ativamente defender a ação errada do outro.

E esse começo de texto não é aleatório, ele tem muito a ver com o desfavor que estamos enxergando aqui: o óbvio é que essa gente está muito descompensada, desde coisas engraçadas como pedir intervenção alienígena até coisas bem escrotas como a da notícia que ilustra os textos de hoje. O que não é óbvio é que essas pessoas não vão desaparecer, nem mesmo com todo o escárnio e revolta que estão gerando.

Xinga, sacaneia, bate… e elas vão continuar existindo. Insanidade alimentada pelas bolhas de internet que não vão desaparecer. Governos altamente opressivos já tentaram, não vai ser o Xandão que vai conseguir controlar a internet. E sim, até a China vive enxugando gelo para calar seus rebeldes, não é essa unidade toda que as pessoas veem pela mídia (oficial) deles. Internet não é mais negociável no século XXI: vai ter enquanto tiver eletricidade.

Sim, sabemos que pode ser assustador considerar que muitos desses malucos e escrotos estão ao nosso redor, e eu não estou me referindo às pessoas que votaram no Bolsonaro, estou falando do subgrupo de radicais que se perde em teorias da conspiração e resolve agir de acordo. O bolsonarista médio é um pacote muito comum de classe média/alta conservadora com a qual convivemos desde que o Brasil é Brasil.

E com esse grupo se conversa, mesmo que rudimentarmente. Digo o mesmo da esquerda trabalhista e dos direitos humanos: podem ser chatos em algumas coisas, mas novamente, se conversa com esse grupo. O Brasil passou muito tempo negociando entre esses dois lados, infelizmente a coisa não avançou como deveria por corrupção e incompetência. A Era da Radicalização Digital chegou e com ela as mentes mais descompensadas viram na política um alento, uma oportunidade de pertencimento.

Para eu ou para você, por mais que discordemos em questões políticas ou sociais, ainda existe uma base comum de boas intenções baseada em bom senso. Mas para quem não teve acesso a um mínimo desse bom senso, as coisas são muito mais assustadoras: são pessoas que não acreditam que a sociedade pode se regular, que não tem expectativa de cooperação do outro. Tanto que radicais de direita e esquerda acabam se encontrando no autoritarismo: medo do outro que vira vontade de exercer controle.

E aí que entra a ideia nem um pouco intuitiva de achar uma solução mais pacífica para os bolsonaristas radicais: se eles ficarem com mais medo ainda da sociedade, vão se unir com mais força e com mais agressividade, acreditando em virtualmente qualquer teoria da conspiração jogada em sua direção. O povo de direita sempre nos xingou aqui porque dizíamos que sem direitos humanos a violência brasileira nunca acabaria, temo que o povo de esquerda vá fazer o mesmo quando falarmos isso sobre os bolsonaristas selvagens.

Se não tratar o medo dessa gente, o ciclo nunca vai parar. E eu realmente acredito que a revolução pela qual passamos na comunicação digital não permite mais que se controle essas pessoas direto na fonte da desinformação e do medo. É difícil entender como diabos essas pessoas acreditam em tanta asneira e ficam tão empolgadas com elas, mas não tem atalho: uma sociedade que não quer ser tomada pela insanidade precisa fazer coisas difíceis.

Repressão violenta e censura não são coisas difíceis, na verdade, são a ideia mais antiga da humanidade sobre o tema. Quantos anos passamos aqui dizendo que já fazemos a parte da violência contra a criminalidade e que não está resolvendo? Que quase todos os países mais seguros do mundo são bons de prevenção ao invés de punição? Temos que ser coerentes: não é com caveirão que se pacifica favela, não é com porrada que se acalma bolsominion.

Até porque não queremos radicalizar mais pessoas. No começo das manifestações contra a derrota de Bolsonaro, tinha muita gente na rua, quase todas muito pacíficas (era até engraçado em muitos casos), com o passar das semanas foi sobrando apenas os muito radicais ou muito desocupados/descompensados nos protestos. Eu até acho que meio sem querer, a postura meio blasé/cúmplice da polícia com eles ajudou: a maioria cansou de ser tonta e perdeu o ânimo.

Não é o ideal ignorar, mas é melhor do que confrontar: confrontar cria mártires e símbolos, coisas que sempre dão mais combustível para as chamas revolucionárias. Sim, como a Sally bem disse, o que é crime é crime e não pode ser ignorado, mas o que não é deveria ser mais bem compreendido. São pessoas que não estão bem da cabeça e estão descontando na causa mais próxima. Ficar xingando, isolando e talvez até agredindo essa gente vai piorar as coisas.

Pena que o outro lado também está infestado de radicais que não vão deixar ninguém estender a mão, afinal, todo mundo fica com medo de ser acusado de “passar pano”. Quando a ideia de compreensão radicalizou para suporte, os caminhos para trazer de volta as pessoas que podem ser salvas do bolsonarismo maluco fica fechado.

Eles ficam muito piores quando estão isolados na bolha deles. Se puder, tenta trazer um de volta, na paz, na conversa, no amor. Sempre lembrando que por mais irritados e agressivos que possam parecer, são pessoas com muito medo.

Só evite os armados, por favor.

Para dizer que não confia em ninguém (não é saudável), para dizer que confia em todo mundo (não é saudável), ou mesmo para dizer que estava com saudades do Desfavor direitos humanos: somir@desfavor.com

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bolsonaro, histeria punitiva, saúde mental

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