Relação dolorosa.

Infelizmente, relacionamentos totalmente disfuncionais não são raros. Alguns deles são tão bizarros que partem para a agressão física. Sally e Somir acham que isso é passar muito do ponto de não-retorno, mas discordam sobre quem está com a cabeça mais fora do lugar. Os impopulares batem, ou não.

Tema de hoje: quem está pior da cabeça num relacionamento que chegou na agressão física, quem bate ou quem apanha?

SOMIR

Quem bate normalmente está mais errado. É importante aqui explicar que estamos falando de um relacionamento que, por algum motivo, continua existindo após uma das partes partir para a violência física. Os que terminam imediatamente após uma agressão deixam de contar aqui, por motivos óbvios.

Expressar frustração ou descontentamento através de agressão física é um comportamento que já deveria ter sido controlado na infância. Se ele chega na vida adulta, temos um problema muito mais sério. Sim, é instintivo querer causar dor naqueles que nos incomodam, mas seres humanos passam tanto tempo sob a tutela de adultos justamente porque o grau de exigência da sociedade é (ou pelo menos deveria ser) altíssimo.

Não estou dizendo que é fácil controlar um impulso tão primal, mas estou dizendo que esse esforço não é opcional. Quase todos os grandes avanços sociais humanos partem do princípio de trocar a lei da selva pela lei do homem. Agressão física é lei da selva. Ninguém é perfeito, erros acontecem, mas que fique claríssimo que é um erro. E que não pode se repetir.

E não estou falando de brincadeira bruta ou tapinha de frustração. Homens são mais propensos à primeira e mulheres à segunda. Não estou pregando relação de robôs, e sim que existe uma linha clara entre reações físicas comuns e agressão explícita. Eu acho engraçado quando eu falo uma bobagem e uma mulher dá um daqueles murros ou tapas desengonçados no meu braço, por exemplo. Até porque muitas vezes elas sentem mais dor que a gente (mulheres, não batam reto, e sim de cima para baixo com a parte “fofa” da mão, nunca com os dedos, de nada pela dica).

Mas tem uma linha clara onde não é uma reação física e começa a virar agressão. Mesmo se eu não me machucar, eu considero fim da linha em qualquer relação que tiver. É uma linha que eu não cruzo a não ser em autodefesa e não tolero que outros cruzem comigo. Só crianças são perdoadas. Adultos não podem partir para a agressão para resolver incômodo ou frustração. Ponto final.

É por isso que por mais que concorde que uma relação que dure após uma agressão física tem duas pessoas com algum problema, o problema de quem bate é muito mais grave. É regressão à lei da selva. Papo furadíssimo que isso vem no pacote da passionalidade: a pessoa pode ter os sentimentos à flor da pele e não agir dessa forma cretina. Gente violenta é violenta em vários cenários, não só em relações com muitos sentimentos envolvidos.

O problema não é e nunca vai ser “amar demais”, o problema sempre é uma falta de filtro básico para convivência em sociedade. O que acontece muitas vezes é que a pessoa é uma covarde em outros contextos e desconta tudo na pessoa que está ao seu lado em casa. É muito mais comum em homens, mas existem sim mulheres agressoras, e elas não são nada engraçadas na vida real.

A pessoa que apanha e tolera é vítima de algumas questões psicológicas complicadas, mas não estão quebrando essa regra fundamental de regredir para a lei da selva. Medo é um sentimento muito poderoso, e não é só medo de apanhar mais, às vezes é medo de ficar sozinho, medo de não conseguir algo melhor, medo de perder alguns confortos, medo de colocar os filhos em risco… quem está com medo tem mais justificativa para cometer erros.

A pessoa que bate normalmente tem vários problemas psicológicos em conjunto e ainda por cima é violenta. Achar que vai fazer uma relação funcionar ou resolver seus problemas batendo em outra pessoa é um buraco muito mais profundo do que o de ter medo ou “comodismo”. Quem apanha pode sair dessa relação e achar outra onde os seus problemas são reduzidos ou totalmente eliminados, quem bate provavelmente vai continuar fazendo a mesma coisa a não ser que se trate.

Isso não quer dizer que eu não vá te dizer para sair correndo na hora de uma relação onde você foi agredido(a) fisicamente, o fato de eu achar que quem bate está com problemas mais sérios não significa que seja justificável ficar apanhando. Eu entendo o ponto da Sally de dizer com todas as letras que não é aceitável tolerar violência e se você o fizer tem que cuidar muito bem da sua mente, mas é muito importante ressaltar quão errado está quem bate.

Quem bate precisa de muito trabalho, ajuda de especialistas e disponibilidade mental para resolver. Quem bate não vai melhorar sozinho. Quem bate não compensa nenhuma outra característica da relação: é uma pessoa que falhou no ponto mais básico da convivência humana. Nosso sistema de leis existe justamente por causa de gente assim, que não consegue se controlar e autorregular.

E, por mais que seja cruel dizer isso, muitas dessas pessoas que batem foram tão brutalizadas pela vida que simplesmente não vivem na mesma sociedade que a gente. Elas compartilham o espaço, mas não são parte dela. Não quer dizer que não tenham nenhuma qualidade ou que esteja pregando extermínio, quer dizer que se você não acha normal apanhar numa relação, não foi brutalizado(a) no mesmo nível. E é complicado reconciliar duas visões de mundo tão diferentes.

Existem os covardes que batem por acharem que não vai ter retaliação, existem as pessoas realmente com problemas mentais em episódios violentos e existem as pessoas que simplesmente não entendem por que bater no outro é um problema. Nos três casos, eu considero gente muito mais difícil de arrumar do que quem aceitou ficar numa relação com violência física.

O foco aqui é numa solução: quem apanha tem uma muito mais próxima de que quem bate.

Para dizer que vai me encher de porrada, para dizer que violência é a humanidade e o resto é invenção, ou mesmo para dizer que mais errado é a pessoa que você menos gosta: somir@desfavor.com

SALLY

Quem está pior de cabeça em um relacionamento disfuncional: quem bate ou quem apanha?

Duas ressalvas: estamos falando de agressão física, e estamos falando dos casos em que a pessoa que bate e a pessoa que apanha poderiam sair desse relacionamento se quisessem.

Dito isto, na minha opinião, estão ambos igualmente ruins da cabeça, pois o equívoco é o mesmo: a manutenção de um relacionamento sem respeito. Pode ser bater, pode ser xingar, pode ser a falta de respeito que for. Aos olhos da lei, algumas são mais graves do que as outras, mas aos olhos da saúde mental, tá todo mundo no mesmo barco.

É um projeto de sofrimento casado. Para que um casal continue depois que essa porta da falta de respeito é aberta, não tem um só ruim da cabeça, ambos estão mal – e muito mal. Não tem sádico se não tiver masoquista. É um pacto implícito onde ambos acabam usufruindo de ganhos secundários (muitas vezes inconscientes) oriundos dessa relação disfuncional.

Quem bate e quem apanha estão igualmente fodidos da cabeça, mas calhou de um dos lados ser mais socialmente reprovado do que o outro. Percebam que eu não estou perguntando o que é mais grave, o que estamos perguntando é quem está pior de cabeça.

Vai ter quem diga que está pior aquele que apanha, pois é muito mais sofrido apanha do que bater. Vai ter quem diga que está pior aquele que bate, pois bater é muito mais grave do que apanhar. Meus queridos, é tudo uma coisa só, um projeto único: se ambos, podendo sair, continuam, é sinal de que essa situação não causa um desconforto suficiente, e isso faz de ambos muito doentes da cabeça.

Quem apanha e, podendo sair, fica, pode ser acolhido socialmente como vítima e receber todos os afagos do mundo, mas, se a pessoa escolheu ficar, ela escolheu, indiretamente oferecer a si mesma para levar porrada. Existem formas passivas de autodestruição. Acreditar que o outro vai mudar é o principal sinal de probleminha de cabeça (e de autoestima), pois, por mais que a pessoa mude, ela já te bateu e não pode te “desbater”. Continuar gostando de alguém que te bateu (mesmo que a pessoa não te bata nunca mais) indica uma autoestima muito, mas muito baixa.

O pior sinal, o sinal de que a pessoa está no fundo do poço da saúde mental, é ver relativização de violência: “mas eu sei que ele me ama” (um amor onde há agressão física não serve), “todo mundo erra, somos humanos” (agressão é um pouco mais do que erro, não acha?) ou ainda “ele prometeu que vai mudar” (se a pessoa pudesse controlar sua agressividade, não teria batido, é algo muito difícil de ser modificado, provavelmente vai acontecer a regra, e não a exceção).

Ao mesmo tempo, tem quem tente justificar o lado de quem bate, colocando a culpa na criação, em traumas ou em fatores externos, como bebida. Bem, muita gente passou por traumas, teve a pior das criações ou bebe e nem por isso sai batendo. A culpa não é de nada externo, é de quem bate, e, é claro, de quem apanha, se podia sair e resolveu ficar.

Tanto é que ambos acabam se unindo para construir uma narrativa que distorce e mitiga o ocorrido: quem bate fala que o outro o tira do sério, desperta o que há de pior nele ou justifica com algo externo (um momento difícil, bebida etc.). Quem apanha acaba reduzindo a importância do que aconteceu, se convencendo que não vai se repetir e que quem bate terá controle para não fazê-lo novamente.

É graças a esse somatório de esforços, aos argumentos tortos de quem bate somados aos argumentos tortos de quem apanha, que um casal se mantém nesse tipo de relacionamento pouco saudável. Bem ou mal, ambos conseguem ver amor ali. Não tem amor. É dependência emocional, é carência, é desconhecimento do que é amor, é tudo, menos amor. Amor e agressão são incompatíveis. Mas… vai saber o que a pessoa viu como referência de amor na sua casa, né?

Se uma das partes estiver bem de cabeça, essa relação não se sustenta. A pessoa (seja a que bate, seja a que apanha) percebe que está tão desequilibrada, tão equivocada, com a cabeça tão ruim, que não pode estar em um relacionamento. Antes precisa resolver as suas questões e só depois se dedicar ao outro. Se tiver um melhor de cabeça do que o outro, esse relacionamento não se sustenta.

Se o relacionamento se sustentou, desculpa, mas estão ambos igualmente fodidos da cabeça, por mais que você se solidarize mais com um lado do que com outro. Não tem uma vítima com zero responsabilidade e um monstro com toda a culpa.

Tem um projeto de sofrimento casado onde ambos topam tapar o sol com a peneira e fingir que aquilo é viável, que aquilo é amor, que aquilo pode ser melhorado ou curado. E, quando a gente finge em vez de olhar a questão como ela realmente é, ela nunca se resolve.

Não há gradação de danação quando ambos concordam em permanecer em um barco furado, que está afundando. Não importa quem fez o furo, não importa o quanto vai demorar para afundar, não importa nada: o barco está afundando e ambos, por motivos iguais ou diferentes, insistem em ficar. O equívoco é o mesmo, só muda a alegoria que se usa para justificá-lo.

“Mas Sally, quem apanha sofre mais, se machuca, dói, quem apanha e fica está pior da cabeça”. Talvez as consequências físicas sejam mais dolorosas para quem apanha, mas o grande sofrimento é estar em um relacionamento nada saudável, e isso, ambos compartilham, cada um a seu modo. Algumas pessoas têm vocação para um suposto papel de algozes, outras para um suposto papel de vítimas, se quem apanha fica, isso casou com sua neurose.

Na real, não tem mocinho nem bandido. Quem apanha e resolve ficar não é vítima, é cúmplice. O mundo não está preparado para esta conversa, mas vocês sim: é preciso duas pessoas para que um relacionamento continue depois de uma agressão, e as duas tem que estar muito, mas muito fodidas da cabeça, igualmente fodidas da cabeça, pois a danação para ambas é a mesma: viver o inferno de um relacionamento doentio.

Para dizer que discorda dos dois e acha que quem está pior é quem apanha, para dizer que de fato o mundo não está preparado para essa conversa ou ainda para dizer que nem você está preparado para essa conversa: sally@desfavor.com

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Comments (16)

  • Quem apanha, entendo os aspectos de dependência emocional e financeira que podem estar envolvidos, mas arriscar sua saúde e as vezes a de seus filhos e outros familiares é injustificável. Quem bate tem essa ilusão de “fui provocado, tenho meus motivos” e não há como resolver isso rapidamente.

  • Para alguns bater eh normal

    Um “amigo” advogado se desculpou pelo atraso ao nosso jantar. Justificou que
    foi aliviar a barra do primo na delegacia.
    Perguntei o que havia acontecido.
    Muito tranquilo contou que o primo “esquentou o lombo da esposa” e a polícia o levou para a delegacia.
    Não entendi o que era “esquentou o lombo” e perguntei. Ele disse que o primo bateu tanto nas costas da esposa que os vizinhos chamaram a polícia. (Um casal já com 2 filhos)
    Nem esperei o jantar ser servido, peguei a bolsa e evaporei.
    O tranqueira ainda enviava mensagem perguntando se foi pelo atraso que eu nao retornava as ligações.
    Quequéisso? Ele nem se deu conta do absurdo que havia contado, pra ele aquilo era normal.

  • Tendo a concordar com o Somir nessa. Aliás, eu penso que a partir do momento que qualquer um dos dois parte pra agressão, é porque já tem algo muito errado e não tem mais volta, melhor seria terminar mesmo, partir pra outra, mas antes, se reavaliar primeiro.

  • Pior quem apanha e continua. A minha madrinha o marido bateu nela, foi a primeira e última vez. O divórcio veio em seguida. Mesmo sem ter condições financeiras ela largou o casamento tóxico.

  • Só sei que não me envolvo mais em caso de violência doméstica, no máximo, chamo a polícia.

    Uma vez tentei ajudar uma amiga de infância que trocava porrada com o namorado dela, pra depois ela sair espalhando por aí que eu não entendia nada, não respeitava o espaço dela, nunca fui amiga de verdade, etc… Ela quis proibir até a mãe dela de falar comigo.

    Fora outras pessoas que conheci que, depois de todo choro pós-porradaria, voltavam por livre e espontânea vontade com o parceiro/a. E claro, que eu não ousasse sequer lembrar do ocorrido.

    Então, não consigo mais ficar perto de gente assim, nem ouvir lamentações desses relacionamentos que nunca terminam e se você se mete, sobra pra você.

    • Te entendo, Ana. Acompanhei uma conhecida pra registrar uma agressão na delegacia e, chegando lá, o policial fez pouco caso da ocorrência, e ainda comentou: “pra quê registrar isso se volta com o cara depois”. Isso foi a muito tempo atrás, lembro que fiquei revoltada na época, mas depois percebi que o policial tinha razão, sabe. Muita mulher que apanha até faz a ocorrência e depois volta na delegacia e retira! Não tem como levar a sério. Eu mesma não ajudo mais.

      • Antes da agressão física, há todo um processo de enfraquecimento psicológico. Tortura.
        Você espera que mulheres decididas e empoderadas compareçam à delegacia ? Claro que não ! Geralmente vão pessoas enfraquecidas, confusas, verdadeiras “pamonhas” como eu já fui.
        O processo de (re)construção da personalidade e auto estima, é lento e trabalhoso. Dependendo da geração a que pertence, e o modo como foi criada, a mulher nem sabe que está sendo agredida em certas questões psicológicas. Há agressões que são veladas e “aceitas” socialmente.
        Assim como tem homens que acham que é normal bater, tem mulheres que acham que é normal apanhar. Fruto de uma sociedade ainda predominantemente machista, mas que está evoluindo graças a Deus .
        E abrir espaço para esta discussão é prova disso.

  • Concordo com o Somir. Aquele que chega ao ponto de querer resolver na base da porrada está pior da cabeça. Quem bate passa recibo de descontrolado(a) e perde totalmente todo e qualquer direito a querer ter razão. E, esse tipo de coisa é pra acabar com o relacionamento na hora, sem choro nem vela. Até porque perdoar seria dar sinal verde pra pessoa fazer de novo…

    • Exatamente o que eu também penso. Só acrescento que agressão física é a última e mais clara evidência de que um relacionamento já morreu faz tempo. Também convém lembrar que, até que se chegue a isso, várias outras coisas “menores” que acontecem antes e ficam mal-resolvidas vão minando uma relação aos poucos, ainda que as duas partes só percebam depois de tudo ter descaralhado de vez.

    • Mas neste caso estamos falando de pessoas que poderiam sair do relacionamento e não o fazem.
      Se colocar numa situação de apanhar, permanecer e continuar apanhando, é estar melhor da cabeça?

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