Bilhões de motivos.

Voltou a ser moda odiar bilionários. O ser humano tem uma relação conturbada com a pequena parcela de pessoas obscenamente ricas deste mundo, especialmente nessas últimas décadas com o imenso fluxo de informações disponíveis para todos nós. Passamos por uma fase de aspiração com figuras mais populares como Steve Jobs e recentemente Elon Musk sendo alçados à categoria de deuses do capitalismo, mas ela parece estar passando. O que me leva a pergunta: qual é a forma certa de lidar com a existência desses bilionários?

Se é que existe uma forma certa…

Mas primeiro, deixa eu explorar meu lado comunista: tem sim algo de positivo em não endeusar pessoas ricas. A humanidade precisa manter um grau mínimo de desconfiança e descontentamento com indivíduos que acumulam tanta riqueza. Se a nossa realidade é baseada em disputa por recursos, há de se preocupar com alguém tendo tantos. Isso desequilibra a sociedade e pode causar sérios problemas de opressão e injustiça se não tiver ninguém para regular o poder que vem junto com tanto dinheiro.

Numa leve tangente, uma das poucas teorias da conspiração que eu acredito é a que diz que o movimento “Ocupe Wall Street” da década passada foi o estopim da cultura lacradora em grandes empresas. As pessoas foram para a rua reclamar que tinha muito dinheiro acumulado nas mãos de uma minoria, e logo depois vemos um financiamento enorme de grupos ativistas baseados na ideia de interseccionalidade?

Dividir para conquistar: enquanto as pessoas estiverem brigando para ver quem é mais oprimido, deixam de olhar para o acúmulo absurdo de capital. Grandes empresas e alguns bilionários conseguiram forjar uma imagem de aliados de causas humanitárias sem ter nenhuma consequência financeira séria por isso. Com esmolas em doações, esses líderes do capitalismo fomentaram a cultura de discussão infinita entre minorias, mantendo o foco em raça e sexualidade, bem longe de desigualdade social.

Então, por um lado, eu gosto do ressurgimento do ódio pelo bilionário, pois mesmo sem entender a lógica da coisa, esse cidadão pelo menos está batendo mais ou menos na direção certa. País que diminui sua desigualdade social fica muito mais tolerante: se você não tem que se preocupar com passar fome ou dormir na rua, é muito mais fácil lidar com as diferenças e ignorar atores políticos que pregam radicalização.

Mas percebam que eu disse mais ou menos a direção certa. O bilionário está na estrutura da desigualdade, mas ele é o sintoma, não a doença. Essa birra quase infantil de comemorar morte de gente rica (como vimos no caso recente do submersível que visitava o Titanic) não tem resultado prático no problema fundamental que cria essa desigualdade toda: nós.

Nós não estamos no topo dessa pirâmide financeira, mas ela é suportada pelos 99% da mesma forma. O bilionário existe porque você existe. Ele acumula recursos produzidos por outras pessoas, baseado em sistemas que de uma forma ou outra foram aprovados e defendidos por essas pessoas. O bilionário não criou a pobreza, ele não foi na sua casa e roubou seu dinheiro, ele virou um funil de recursos porque a sociedade permite que isso aconteça. E se é possível que bilhões de dólares fluam em direção a apenas uma pessoa, é evidente que isso vai acontecer.

Existem formas de combater esses problemas de acúmulo basicamente infinito de dinheiro, a questão é que nossos líderes (quase todos eleitos ou apoiados pelo povão) não querem mexer na forma como as coisas funcionam: para quem quer enriquecer, nada melhor do que ter todos os caminhos para isso abertos. Estou falando do clássico político corrupto, mas nós que elegemos eles temos uma parcela dessa culpa.

E ela pode ser percebida quando surgem bilionários mais carismáticos. Eu já mencionei Steve Jobs e Elon Musk, e vou aproveitar as imagens deles para ilustrar isso: ambos tem grupos de fãs que enxergam neles uma capacidade quase que messiânica de prever e moldar o futuro. Jobs tinha e Elon tem suas características admiráveis, mas elas acabam superfaturadas pela quantidade de dinheiro que conseguiram acumular.

Muita gente acaba convencida que chegar nesse nível de riqueza só pode ser resultado da personalidade e das escolhas feitas por essas pessoas. O bilionário que você não gosta ganhou dinheiro de forma antiética, o bilionário que você gosta ganhou por ser um gênio único no mundo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: são pessoas que acertaram em algumas decisões, mas que assim como todo mundo, dependeram também de estarem no lugar certo na hora certa.

Não tem nada de fundamentalmente diferente no bilionário. Dinheiro tem o péssimo hábito de fluir na direção de mais dinheiro, e um misto de boas escolhas e sorte acaba gerando essa reação em cadeia que acaba em fortunas absurdas. Num mundo mais ideal, existiriam mais sistemas de redistribuição dessa espécie de “bug” no sistema econômico, evitando que o dinheiro tivesse tanta preferência para seguir em direção de pessoas que já são muito ricas. Mas não gostamos de sequer sugerir essas regras.

E isso pode ser analisado por dois ângulos: o primeiro é que quem já começou em vantagem (Elon Musk já nasceu rico, por exemplo) não tem incentivo nenhum em criar mecanismos para ficar menos rico. São seres humanos assim como nós, todo mundo que se vê numa situação vantajosa tende a querer que ela continue sendo vantajosa. Como políticos estão quase sempre entrelaçados com grandes empresários, seja por afinidade ou suborno deslavado, é muito raro vermos ações que tentam coibir cartéis ou esquemas para dar vantagens aos “amigos do Rei”.

O outro ângulo é que o ser humano médio parece ter sempre uma esperança de acabar nessa posição de vantagem. Gente que baba ovo de bilionário quase sempre está aspirando chegar numa posição parecida. Eles podem até ver as injustiças do sistema que deixa ricos mais ricos e pobres mais pobres, mas no final das contas, ele se projeta na posição do rico. O mundo está recheado desses “traidores” do movimento, gente que defende bilionário porque quer ser rica eventualmente e ter todas as vantagens para ela também.

Então, reforço: não é ruim que mais pessoas estejam se rebelando contra os muito ricos e querendo ruir essa aura de gênios superiores que ficou popular nas últimas décadas. Mas é ruim que tudo isso seja focado na figura física desses bilionários. Eles não causam a nossa pobreza, eles são uma espécie de ralo onde a desigualdade desemboca. Ação e reação, se o sistema permite que o dinheiro flua do mais pobre ao mais rico, é inevitável que acabemos com essas figuras.

E aqui, meu lado libertário sofre novamente: se o cidadão médio não pressionar os governos a criar mais regulações contra esses esquemas de acúmulo de capital, e talvez mais importante, parar de achar que tudo é culpa dos outros e que ele nunca participa do processo, o ralo só vai aumentar.

No Japão do final do século retrasado, o governo resolveu privatizar suas maiores indústrias. O governo as tinha criado para tentar competir com o ocidente e deixar de ser um país essencialmente rural. Como as coisas não estavam dando muito certo, acharam uma boa vender essas empresas e deixar a iniciativa privada fazê-las se tornarem mais lucrativas.

Deu muito certo. Para as pessoas que compraram essas indústrias. Algumas famílias tinham capital para comprar essas empresas, por exemplo, a família Mitsubishi, a mesma da marca que conhecemos até hoje. Essas famílias ficaram tão absurdamente ricas com esses negócios comprados do Estado a preço de banana que estagnaram a economia japonesa. Formaram cartéis, alinharam os preços, pararam de inovar e começaram a investir em ações, imóveis e áreas rurais com os lucros.

O governo de lá decidiu dar um basta nisso, muito porque precisava de dinheiro para começar guerras (spoiler: não terminou bem). O governo nipônico foi lá e arrancou dinheiro dessas famílias na cara dura. Forçou elas a venderem seus bens para o governo, que os vendeu para outras pessoas, evitando a concentração de poder e renda. Depois da guerra, os americanos, que tomaram o poder no país, mantiveram o sistema e foram ainda mais cruéis nessa distribuição forçada de recursos.

Vejam bem, não foi um lance comunista de roubar o capital das famílias, elas foram compensadas, e mesmo com o impacto, continuaram ricas o suficiente para manter grandes empresas funcionando. Muitas das marcas japonesas famosas que conhecemos foram criadas após a Segunda Guerra Mundial, mas como eu disse, até mesmo as que vinham de antes disso conseguiram se manter.

O que o Japão fez foi atacar o sistema de concentração de renda. É claro que isso tirou dinheiro da mão dos ricos, mas nem tanto assim: o que eles perderam foi a capacidade de formar cartéis e matar a concorrência. De uma certa forma, eles defenderam a livre iniciativa e o modelo capitalista. Não à toa, o Japão acabou com uma sociedade bem menos desigual do que a maioria dos outros países do mundo. Ainda existem ricos absurdamente ricos? Sim. Mas não são dois ou três bilionários donos de tudo. A Alemanha fez um processo mais ou menos parecido de quebrar grandes cartéis e deixar mais gente ter dinheiro e poder do que apenas uma minoria de amigos e aliados de quem já era rico. São outro país que apesar da economia fortíssima, não aparecem com muito destaque na lista dos bilionários.

O sistema cria bilionários. E ao contrário do que muita gente cega por ideologia vai te dizer, não é exclusividade de sistemas baseados em capitalismo selvagem ter gente rica. Bilionários não são seres mágicos que vieram dos céus para nos ensinar a viver, e não são vilões de filme antigo cofiando seus bigodes enquanto tramam o nosso fim, são resultado de escolhas que cada povo fez.

O bilionário não é o motivo pelo qual você passa sufoco para pagar aluguel no final do mês, o sistema que permite que as vantagens de uma minoria se acumulem sem parar que é. Eventualmente o Estado precisa botar limites, não limites em quem fica rico, mas limites de quanto essas pessoas ricas podem manipular o sistema em seu favor. Para cada bilionário, mil milionários fazem mil vezes mais coisas que impedem a diminuição da desigualdade social no mundo. E para cada milionário, mil pobres sem noção toleram esses esquemas sujos pela esperança de fazer parte deles um dia desses.

Não adianta só olhar para o bilionário. Ele é o ápice do sistema que toleramos, e só dá para enfrentar desigualdade de baixo para cima. Um povo que exige o fim de cartéis e destrói a carreira política de quem trabalha em prol apenas dos ricos é um povo que tem chance de viver num mundo menos desigual. Um povo que fica batendo palminha para bilionário fazendo meme na rede social ou que acha que é alguma forma de justiça ver alguns deles morrendo debaixo d’água está fadado a ver mais e mais acúmulo de capital na mão de poucos.

Eu já disse em outro texto: se pegarmos todo o dinheiro dos bilionários e distribuirmos entre as pessoas mais pobres, sustentamos elas por uma ou duas semanas. Parece que o cidadão médio não sabe fazer conta e não entende como dinheiro de ações não vale nada se você tiver que vender tudo. É uma preguiça mental misturada com síndrome de vítima.

E que não vai resolver nada. Nossa relação com bilionários deveria ter muito menos a ver com os… bilionários. Não são eles que fazem as coisas, são eles que recebem os recursos que toleramos ser desviados de função. Temos um sistema que é muito leniente com acúmulo de dinheiro e poder por poucas pessoas. Não estou pregando o comunismo, porque ele está fadado ao fracasso também, mas democracia capitalista com representantes políticos que fazem alguma coisa para reduzir desigualdades e percebem que algo deu muito errado quando pessoas juntam mais dinheiro do que tem o que fazer com ele pode resolver muitos problemas.

E para termos isso, precisamos saber como escolher representantes, e talvez mais difícil: precisamos renunciar à ideia egoísta de que um dia desses podemos ser nós os privilegiados. É isso que eu acho quase impossível de conseguir… somos todos bilionários potenciais, esse é o sonho que todos os que mandam em você querem que você tenha.

Para me mandar para Cuba, para dizer que a culpa é deles sim senão ela seria sua, ou mesmo para dizer que quando ficar bilionário(a) vai comprar o Desfavor e me mandar apagar este texto: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • “Eventualmente o Estado precisa botar limites, não limites em quem fica rico, mas limites de quanto essas pessoas ricas podem manipular o sistema em seu favor. Para cada bilionário, mil milionários fazem mil vezes mais coisas que impedem a diminuição da desigualdade social no mundo. E para cada milionário, mil pobres sem noção toleram esses esquemas sujos pela esperança de fazer parte deles um dia desses.

    Não adianta só olhar para o bilionário. Ele é o ápice do sistema que toleramos, e só dá para enfrentar desigualdade de baixo para cima. Um povo que exige o fim de cartéis e destrói a carreira política de quem trabalha em prol apenas dos ricos é um povo que tem chance de viver num mundo menos desigual”.

    Dá pra resumir bem o pensamento do Somir e o ponto de vista apresentado no texto só com esse trecho. O difícil, porém, é fazer o Brasileiro Médio entender isso…

    • “O difícil, porém, é fazer o Brasileiro Médio entender isso…” Sim, UABO. E bota “difícil” nisso…

  • Kenny McCormick

    O que os bilionários vão fazer?
    Para vender uma imagem de caridosos, vão passar seus recursos para a mão de fundações que levam seus nomes para a posteridade, fundações essas supostamente sem fins lucrativos, mas com a família do bilionário tendo parte no conselho administrativo e com a presidência de tal fundação na mão de um executivo de carreira.
    Em teoria, as pessoas parecem ter condições mais igualitárias, mas isso, cabe ressaltar, é só na teoria, porque na prática, bem… Nós sabemos como o jogo vai ficar.

  • Mas também em parte, os países menos desiguais são assim porque seus milionários vão pra outros países pra fugir de impostos exorbitantes pro estado de bem estar social, não?

  • “Eu já disse em outro texto: se pegarmos todo o dinheiro dos bilionários e distribuirmos entre as pessoas mais pobres, sustentamos elas por uma ou duas semanas. Parece que o cidadão médio não sabe fazer conta e não entende como dinheiro de ações não vale nada se você tiver que vender tudo. É uma preguiça mental misturada com síndrome de vítima.”

    Sabe o por quê disso, Somir? É que a grande maioria das pessoas nem sequer realmente entende como a coisa toda funciona. Na cabecinha dessa gente, a ideia de ser obscenamente rico como um Elon Musk da vida deve corresponder a ter em casa uma piscina de moedas pra literalmente nadar em dinheiro, como o Tio Patinhas dos desenhos animados faz na sua caixa-forte.

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