Iluminados.

O sol mal nascia no hemisfério ocidental do planeta quando a luz foi avistada pela primeira vez nos céus. Apenas um ponto amarelado nas primeiras horas, pulsando gentilmente. Mas logo o que interessava exclusivamente astrônomos profissionais e amadores ao redor do globo ganhou novas proporções: em questão de segundos, o ponto expandiu num orbe quase tão grande e luminoso quanto o próprio sol. A notícia estava espalhada: algo tão gigantesco quanto desconhecido surgira na vizinhança de nosso planeta.

As primeiras análises científicas indicavam um objeto massivo com mais ou menos duas vezes o diâmetro da lua, em órbita mais ou menos entre a Terra e Marte. A luz emitida pelo objeto desafiava o conhecimento humano, numa escala de magnitude muito maior do que seria possível pelo tamanho. E principalmente, por uma característica surpreendente: a luz não aquecia o que tocava. Apesar de iluminar as noites de diversos lugares do mundo nos dias que se seguiram ao seu surgimento, as temperaturas não indicavam nada de diferente de uma noite habitual na região. Apesar da luz ser percebida por todo tipo de animal – bagunçando hábitos de diversas espécies noturnas – as plantas pareciam ignorar a luz extra. Os girassóis continuavam seguindo o sol, indiferentes ao novo ponto luminoso nos céus.

O falso sol ficou onde estava por algumas semanas. Evidentemente, modificando o comportamento de boa parte da humanidade. Com noites claras feito o dia, era como se uma epidemia de jet-lag tivesse se espalhado pela população. De nada ajudava o surto de cultos apocalípticos, a imensa maioria pregando alguma forma de julgamento final através daquele corpo celeste. A teoria científica mais aceita naquele tempo era que o que quer que estivesse naquela posição, não chegara recentemente, mas sim mudara de status repentinamente. Talvez por algum fenômeno cósmico ainda não compreendido, um mini-buraco negro estava consumindo matéria ao seu redor, com prazo de validade para evaporar em radiação.

O que ainda não explicava a luz “fria”. Foram diversas hipóteses analisadas até que ficou decidido que aquele corpo celeste precisava ser visitado. Pela posição, reutilizando sondas montadas para Marte, estimava-se pelo menos uns 4 meses de viagem para alcançá-la. Os telescópios terrestres não eram de grande ajuda pelo excesso de luz, e nem mesmo espectrômetros dos mais modernos eram capazes de identificar a composição do objeto. A missão foi lançada a toque de caixa, mais ou menos um mês e meio após sua aparição.

Mas a missão não foi um sucesso. Dois meses após o lançamento, com a sonda no meio do caminho, o objeto cresceu mais uma vez, novamente de forma exponencial: agora tinha o dobro do tamanho da Terra. A luz aumentou de proporção igualmente. Agora as noites no nosso planeta eram ainda mais claras que os dias, mas ainda sim sem gerar o calor que se presumiria. No processo de expansão da luz, um imenso pulso magnético foi detectado, o qual inutilizou todos os sistemas da sonda imediatamente. O pulso alcançou a Terra, desligando quase tudo o que era eletrônico por dias.

A essa altura, os cultos apocalípticos tinham certeza que estavam corretos. O caos se instaurou na sociedade de tal forma durante esses dias sem energia ou eletrônicos que a maioria dos países com alguma estrutura ainda de pé declararam lei marcial. A luz havia mudado a sociedade humana em poucos meses, mas para a vida animal, as coisas estavam muito piores: com a falta do ciclo de noite e dia, muitas espécies começavam a demonstrar comportamentos bizarros, algumas até perdendo boa parte de suas populações no processo. As plantas, que não pareciam sentir nenhum efeito inicialmente, começaram a crescer de forma descontrolada depois dessa segunda fase de crescimento da luz nos céus.

E essa fase durou mais dois anos. Dois anos nos quais florestas retomaram as paisagens urbanas, a vida vegetal incontrolável até mesmo para os mais esforçados jardineiros. De nada ajudava o estado da civilização humana: na expectativa de um fim iminente, o senso de longo prazo da população esvaiu-se tais quais as sombras ao céu aberto. A luz constante começava a mexer seriamente com os humores e a saúde das pessoas, que cada vez mais, milhões perecendo com os resultados de privação de sono e tantos outros nas guerras e confrontamentos gerados pela resposta das religiões ao processo.

Com o colapso da maior parte da estrutura social e econômica do planeta, faltava suporte para os cientistas interessados em descobrir os segredos daquela luz sem calor. E com a profusão de explicações religiosas e místicas em geral, as pessoas não pareciam muito abertas a esse tipo de informação. Depois de dois anos, começava a terceira fase. Sem aviso, houve mais uma expansão do objeto celeste. E dessa vez, tomava quase metade dos céus durante as falsas noites. O sol passava a ser o único objeto realmente visível nos céus além da Luz, já chamada como se fosse uma entidade viva pelos locais. A maior parte da humanidade capaz de tanto enfiou-se nos subterrâneos, enquanto os outros morriam lentamente de fome e doenças relacionadas à falta de estrutura social. E por décadas, o mundo viveu assim. Os humanos, de bilhões para milhões em vinte e três anos. A vida animal do planeta basicamente extinta com exceção de alguns animais de rápida adaptação, especialmente insetos e bactérias.

E assim como surgiu, a terceira fase passou. Do dia para a noite, aquela monstruosa bola luminosa nos céus deu lugar ao ponto amarelado novamente. Até hoje se conta a história de quanto a humanidade perdeu quase tudo o que tinha, e como ainda, duzentos anos depois, estamos tentando reconstruir o que tínhamos e recuperar a tecnologia perdida para a luz. Aprendemos a nos unir e deixar coisas como superstições e fronteiras para trás, numa nova sociedade que entende que nossa sobrevivência vem em primeiro lugar. Ainda vamos criar cientistas capazes de entender o que aconteceu ali, mas o importante é que estamos aqui. Na luz e na sombra.

Enquanto isso, numa galáxia próxima:

ZLORG: Fnert, você esqueceu a luz do sistema CF56-8892 ligada no último período?
FNERT: Ah, eu estava procurando um planetóide por lá, pode apagar.

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Comments (2)

  • A adaptação de bactérias é rapidíssima, em dias, e insetos se adaptam em semanas ou meses. A história não conta com isso…perda de ritmo biológico não é tão grave assim, o ganho adaptativo se dá em contexto ecológico.

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