A grande noite.

O ar da madrugada parecia cada vez mais rarefeito para Carlos. A cada uma das frenéticas passadas numa rua escura de um bairro residencial desconhecido, o corpo dava sinais de que a fuga chegaria a um fim prematuro caso não parasse um pouco para retomar o fôlego. À distância, o som das sirenes das viaturas de polícia.

“Pegou no ombro, pegou no ombro, ele não vai morrer… ele não vai morrer” – as imagens do assalto desastrado mais cedo assombravam sua mente. Carlos tentava se convencer que não fizera tanto mal assim ao caixa que teimava em não ceder às suas ameaças. O tiro, acidental, chamara a atenção de uma viatura próxima. Em fuga desesperada há mais de meia hora, ele escolhe a esmo uma das casas para invadir.

Apenas uma grade na frente. Mesmo esbaforido, a adrenalina da perseguição ainda o permitiu saltá-la sem grandes dificuldades. Não que ele tivesse tempo de se atentar a detalhes do tipo, mas por sorte não havia nenhum cachorro ali. Apenas uma luz se projetava do alto da garagem, o suficiente para iluminar parcialmente a fechadura da porta da frente.

“No que eu estou pensando? Como é que eu vou abrir essa porta?” – o som das sirenes aumentava de acordo com o pânico de Carlos. Os policiais se aproximavam e não havia para onde correr. Não mais. Talvez pedindo ajuda à sorte novamente, fez o mais simples: girou a maçaneta. Pedido concedido! A porta se abre sem maiores dificuldades. As luzes avermelhadas dos carros de polícia começam a iluminar a rua. Carlos entra na casa e se prostra atrás da porta, segurando a respiração.

O som dos seus perseguidores vem… e vai. O suspiro de alívio precede a realização de que uma luz azulada pulsava na sala adjacente. Com alguns passos silenciosos, posiciona-se na parede divisória, arma em punhos. Com um rápido movimento, observa o que parece ser uma sala de estar. Televisão ligada, mas sem emitir sons. Um sofá vazio diante dela.

Carlos respira fundo e começa a maquinar uma forma de escapar daquela situação. Não tinha certeza se os policiais tinham visto sua cara, mas o caixa com certeza. Por um lado não queria ser culpado por uma morte, mas caso o tiro tivesse sido fatal, teria maiores chances de escapar impune. Tomado por inúmeros pensamentos, não consegue registrar direito a figura que surge pelo corredor.

Um homem. Carlos estava à plena vista no meio da sala. O homem parecia ter seus cinquenta anos de idade, roupas sociais, cabelos grisalhos e um frondoso bigode combinando. Ele sai do corredor e percebe Carlos imediatamente. Ambos ficam estáticos. O invasor mostra a arma, pedindo silêncio com a outra mão. Sem demonstrar nenhum sinal de pânico, o homem concorda com um aceno de cabeça.

CARLOS: *sussurando* Fica quieto que nada vai acontecer com você.
HOMEM: Tudo bem.

Carlos estranha o sorriso que acompanha a concordância. Mas logo a realização de que fora visto novamente ocupa seus pensamentos. A situação ficara extremamente mais complexa. Carlos puxa a cortina da janela mais próxima para observar a rua. Um olho no movimento externo, um no interno. O homem então começa a se mexer. Carlos volta sua atenção para ele imediatamente, arma apontada.

CARLOS: Não se mexe!

O homem aponta para o sofá e começa a caminhar calmamente na direção do móvel. Carlos tenta dissuadí-lo com o olhar, sem sucesso. O homem acomoda-se lentamente.

CARLOS: Fica quieto senão eu atiro.
HOMEM: Você não atiraria em mim por me sentar, atiraria?
CARLOS: Eu juro que se você tentar alguma coisa…
HOMEM: Não se preocupe, eu sou inofensivo.

A forma como o homem sorri novamente ao proferir sua última frase começa a mexer com a cabeça de Carlos. Ao tentar entender o motivo pelo qual o dono da casa estava tão tranquilo, deixara de considerar suas possibilidades de fuga por alguns momentos. Carlos só tinha olhos para o homem no sofá. Quando ele começa a buscar por algo no bolso do blazer que usava, Carlos fica irrequieto novamente.

CARLOS: O que você está fazendo?

O homem mostra um maço de cigarros. Com toda a tranquilidade, busca um isqueiro no outro bolso. Após acender um cigarro, dá uma longa tragada.

HOMEM: Quer um?
CARLOS: Não. Escuta… eu não quero fazer mal para você ou para sua família. Eu só quero sair daqui.
HOMEM: Entendo.
CARLOS: Se você me prometer que não vai falar nada, você nunca mais vai me ver, eu prometo.
HOMEM: Você tem a minha palavra que eu não vou dizer nada sobre você.
CARLOS: Eu não sou bandido, cara. Eu só tive um momento de desespero.
HOMEM: Humanos são falíveis, certo?
CARLOS: Isso… eu só quero sair daqui.
HOMEM: Vejamos… se eu tivesse que fugir daqui… eu provavelmente seguiria o corredor até a área de serviço, sairia pela porta do quintal, pularia o muro da casa do vizinho de trás… é relativamente fácil passar pelo portão da garagem deles.
CARLOS: Parece um bom plano. Você não vai contar para ninguém que eu estive aqui, vai?
HOMEM: Não. Eu já dei minha palavra.

Carlos segue pela sala escura em direção ao corredor. Ainda olha mais uma vez para trás, para se certificar que o homem continuava imóvel. O corredor mal iluminado dava para duas. No final, o que parecia ser uma cozinha banhada pela luz da lua através de uma janela. No meio do caminho, nota que a primeira porta está entreaberta. Ele pisa com ainda mais cuidado, olhando pela fresta da porta. Dentro do quarto, apenas uma luz de abajur, mas o suficiente para que ele percebesse algo estranho: manchas avermelhadas na parede.

Carlos, num misto de curiosidade e estupidez, resolve colocar o rosto na fresta para ter uma visão melhor. A porta reage ao seu toque, abrindo-se ainda mais. Lá dentro, algo que faz Carlos ficar estupefato: uma jovem de não mais que seus doze anos por sobre a cama, corpo totalmente ensanguentado, marcas óbvias de violência. Ela está com os dois braços amarrados nos postes da cama, com uma venda e uma mordaça. No centro do peito, uma grande faca enterrada.

Instintivamente, Carlos se afasta dali, estômago embrulhado e mente em choque. Sem perceber, escora-se na porta do outro lado do corredor. Também aberta. Ele cai de costas no chão do outro quarto. Virando o rosto, percebe que há mais manchas de sangue por lá. Ele se levanta, ainda cambaleante, e se depara com mais dois corpos numa grande cama de casal. O homem com o pescoço cortado, banhado em sangue. A mulher, deitada por cima, exibe inúmeras marcas de facadas na camisola tingida de vermelho.

Carlos não consegue se segurar e vomita ali mesmo. Ajoelhado no chão, deixa a arma de lado para segurar a própria cabeça. Não percebe quando um pé chuta o revólver para longe, mas sente uma picada no pescoço. A mão que tapa sua boca para evitar o grito de susto vira seu rosto para trás. O homem que conhecera na sala de estar estava diante dele.

HOMEM: Shhh… shhh…

Ele tenta gritar, mas o corpo começa a responder cada vez menos. Em alguns segundos, não consegue oferecer resistência alguma.

HOMEM: Você acredita em destino?
CARLOS:
HOMEM: Ah, claro, isso vai ser um monólogo. Você não está em condições de conversar, não?
CARLOS:
HOMEM: Eu vou apenas presumir suas respostas à partir de agora. Por onde começar? Bom, seria uma longa história, mas não temos tempo para isso. Sabe, eu sempre tive essa vontade. Uma voz na minha cabeça me dizendo que eu não seria completo enquanto não desse… vazão… aos meus desejos. E essa voz estava certa. Foi… libertador. Foi tão bom que eu realmente acreditei que nada mais se compararia. Veja só, quando você chegou eu estava prestes a chamar a polícia, confessar meu crime e me matar. Mas você chegou, não chegou? Foi o destino. Eu não pensei direito, essa família era minha conhecida, eles até me deixaram dormir no sofá por hoje. Tão acolhedores. Mas agora… agora eu tenho alguém para assinar minha obra-prima. Parabéns, você vai ficar famoso.

O homem sai do quarto e volta alguns momentos depois, com uma faca em mãos.

HOMEM: Não se assuste, meu plano é outro.

Ele coloca as mãos de Carlos por sobre a faca, pressiona firmemente seus dedos no cabo.

HOMEM: Sabe, eu quase me decidi por não usar luvas. Acho que alguém lá em cima gosta de mim. Agora eu preciso colocar essa faca de volta no peito daquela pobre garotinha.

Mais alguns segundos e ele volta. Vai até a arma, recolhe-a e posiciona entre as mãos de Carlos, colocando-a sob o queixo de sua mais nova vítima.

HOMEM: Agora, eu acredito também no poder das escolhas. Essa bela família escolheu me acolher e pagou o preço. Você também vai escolher. Eu vou chamar a polícia, confessar e sair daqui. Você vai recuperar o movimento dos braços antes do das pernas. Ligue os pontos.

O homem sai lentamente do quarto, assoviando uma música alegre.

FIM

Para dizer que não entendeu se o crime compensa ou não, para dizer que adora essas histórias leves para toda a família, ou mesmo para dizer que deveriam me prender por precaução: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Entrei no desfavor por acaso há alguns meses procurando uma forma de matar lagartixas e desde então passo hooooras lendo todas as postagens, ás vezes chego a sentir que os conheço pessoalmente… rsrs.. Mas em relação ao conto, o li no dia da postagem e este não me saiu da cabeça, seus contos me lembra uma série que passava na tv há alguns anos chamada Além da Imaginação, são envolventes e surpreendentes parabéns!!!

  • Seria uma grave perda para o mundo, caso você fosse preso. Na realidade, EU que fiquei preso a este texto.

    Começei a ler romances policiais em 2005. Nao parei mais: Sherlock Holmes, Agatha Cristie, Marcos Rey (carioca) e outros me fascinam com suas histórias. Olha, Somir, voce esta indo neste caminho.

    Escreveu de um modo que, por alguns minutos, senti a adrenalina de Carlos, correndo junto com ele a fim de ve-lo para onde pretendia ir. Vi o assassino acender o cigarro e falar, antes de dar a primeira baforada.

    Muito bacana seu estilo. Você é o cara!

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