Suando frio.

Vanessa suava em bicas. Atravessando um corredor apertado, sentia como se as paredes estivessem vivas, emanando o calor absorvido pelo dia ensolarado, pulsando com os gritos e pancadas vindos de dentro das celas que ficavam do outro lado. O guarda limpa a testa encharcada com um lenço imundo, não antes de reclamar da falta de um ar condicionado na prisão. Segundo ele, os chefes não queriam ser acusados de prestar mordomias para aqueles animais. Vanessa apenas concorda com um acenar de cabeça e um sorriso amarelo; as manchas em sua roupa não eram apenas do calor, mas do nervosismo.

Literalmente no meio do nada, a prisão de segurança máxima para a qual tinha sido convocada à força por policiais tinha uma fama que a precedia: era onde se continham os mais cruéis assassinos e estupradores do país. Os que saíam de lá tinham quase que um diploma de psicopatia para impressionar os colegas. Projetada décadas atrás para conter guerrilheiros e revolucionários do tipo, dava claros sinais de desgaste: as grossas paredes de concreto repletas de mofo, rachaduras e rabiscos obscenos. A falta de janelas e a iluminação deficiente transformavam tudo aquilo num forno mal cheiroso, onde a escória se debatia inquieta. E isso era apenas o corredor.

O guarda dá mais alguns passos e volta-se para uma pesada porta metálica. Há uma diminuta janela de vidro reforçado – embaçada por sabe-se lá quantos anos de manutenção deficiente – pela qual esforça-se para enxergar algo. Ele volta-se para Vanessa mais uma vez, expressão bem mais séria agora. Uma enorme barra de metal faz as vezes de fechadura, ele a puxa com certa dificuldade, para depois arrastar a porta, que guincha com a ferrugem enquanto se abre.

“Há uma linha amarela no chão, não passe dela. Sei que já te disseram isso, mas pra reforçar: não chegue perto dele. Sem encostar, sem abraçar, sem beijar, sem nada! E se acontecer alguma coisa de errado, chama que eu entro, ok?” – o guarda fala tudo com gestos firmes, sem piscar.

“Eu nem sei o que eu tenho que fazer aqui, moço…” – Vanessa arqueia o corpo, postura coagida. A cabeça chacoalhando em negação.

O guarda devolve um suspiro compreensivo. Com um movimento suave do braço, convida-a a entrar. Ela vacila por alguns segundos, mas obedece. A sala, ainda mais claustrofóbica, consistia de uma mesa e dois bancos de metal fortemente chumbados ao chão, um de cada lado. A iluminação não era das melhores e o calor lá dentro fazia os corredores parecerem uma agradável brisa de verão em comparação. O ar parado só acentuava o cheiro azedo que impregnava o local.

Do outro lado da mesa, sentado com as mãos algemadas a uma barra de ferro, um homem que conhecera há mais de uma década atrás. Fábio. Pouco havia restado da imagem que guardava na memória. O cabelo raspado sobre uma cabeça agora cheia de cicatrizes em nada lembrava as longas madeixas negras pelas quais se apaixonara. Os olhos acentuados por marcas da idade e olheiras profundas, a barba por fazer completando a imagem de abandono que sua magreza explicitava. Mesmo assim, seus olhos brilham e seu rosto acende com um sorriso ao vê-la.

Vanessa respira fundo, tenta fazer senso do espaço no qual estava agora confinada com um dos mais brutais e impiedosos assassinos da história recente. Trinta e nove vítimas confirmadas, de ambos os sexos, idades diversas, sem padrões que facilitassem qualquer investigação. Fábio só estava lá por ter se entregado um ano antes. A mídia havia feito um espetáculo na sua prisão, mas logo seguiu em frente com a próxima grande novidade. A vida de Vanessa estava quase voltando ao normal, parentes e conhecidos finalmente perdendo a curiosidade mórbida sobre o relacionamento que tiveram tantos anos atrás.

Fábio, movimentos limitados, faz um aceno rápido com as mãos para que Vanessa se sente. Ela olha para a porta mais uma vez, e para a mesa, onde uma faixa amarela bem desbotada aparentava demarcar o alcance máximo das mãos do preso enquanto algemado à barra. Vanessa suspira antes de finalmente se sentar. Corpo o mais afastado possível, evitando contato visual.

“O tempo te fez bem, Vanessinha… linda você continua sendo, mas agora está mais… madura. Deve estar mais doce… levanta a cabeça, amor. Deixa eu ver seus olhos de novo…” – Fábio fala com uma voz aveludada, segura. Nem parece que está saindo daquela figura cadavérica. Vanessa ergue a cabeça, mas ainda sem olhar diretamente para ele.

“Você é a única que eu sinto falta, sabia? Sozinho aqui, eu poderia pensar em todas as mulheres que passaram pela minha vida, mas… eu sempre lembro de você. Só você.”

“O… o que você quer de mim?” – Vanessa diz, quase que num sussurro.

“Eles não te disseram?”

“Eles disseram pra mim que você ia contar onde escondeu um… um corpo… uma menina, né?”

“Sim. Mas, só pra você.”

“Por quê? O que eu tenho a ver com isso?”

“Eu já te disse, eu só penso em você. Eu queria te ver uma última vez, mas eu sabia que você não ia vir até esse buraco imundo… não se eu não tivesse uma carta na manga.”

“Diz onde está a menina, vamos acabar com isso…”

“Ah, mas não vamos acabar esse reencontro tão cedo assim, Vanessinha. Deixa eu aproveitar um pouco você. Esse lugar fede tanto, mas você… você tem um cheiro tão gostoso… será que o seu gosto ainda é tão bom quanto eu lembro?” – Fábio se aproxima o máximo que pode, olhos fechados, puxando o ar enquanto sorri. Ele morde o lábio ao terminar, olhando fixamente para Vanessa, que responde com uma expressão de nojo.

“Se você continuar assim, eu vou embora! Eu não sou obrigada!”

“Meu amor… você não está em condições de negociar. Aposto que não foi uma viatura comum que te pegou na sua casa, não? Policiais à paisana, aposto que eles disseram…”

“Como você sabe disso?”

“A menina… a menina não era uma qualquer… não… o pai dela é poderoso. Deputado. Adoro quando ele vem aqui, aqueles ternos caríssimos, cabelo impecável, sensação de superioridade. E ele vem sentir o nosso cheiro. Ele vem suar aqui, se secando com um lenço de seda mais caro que todas as roupas que eu uso…”

“Por quê, Fábio?” – Vanessa começa a ficar com os olhos marejados.

“Por que eu fiz o que fiz, Vanessa?”

“Você não era assim… o que te aconteceu? Meu Deus… você fazia isso enquanto a gente estava junto?”

“Nada me aconteceu. Eu sou o que eu sempre fui. Você fez vistas grossas porque gostava de mim, não gostava? Aposto que você mente quando perguntam sobre mim, não? Você sabia quem eu era…”

“Não! Você não era assassino…”

“Se você não sabia, por que mudou de cidade? Por que sumiu e me deixou sozinho?”

“Conta logo onde está essa menina que você matou! Me deixa ir embora!”

“Lembra quando a gente ia para aquela casa na praia? Aquela lá longe, depois das montanhas? O dono tinha morrido ou algo assim, ninguém vinha pra ficar lá. A gente passou momentos muito felizes lá, não passou, Vanessinha?”

“O que isso tem a ver?”

“A cidade acabou crescendo para o outro lado. Aquilo virou uma reserva ambiental… mas foi bom. Ela continuou vazia, por todos esses anos.”

“Ela está enterrada lá? A menina que você matou?”

“Sim, mas só para a primeira pergunta.”

“GUARDA! EU QUERO SAIR!”

“Eu não matei ela…”

“Agora eu sei o que eles querem saber, não vou mais conversar com você!” – Vanessa começa a bater na porta.

“Bom, eu também não impedi ela de se matar…”

“GUARDA!” – Vanessa começa a olhar pra cima, como se procurasse por algo.

“Eles tinham uma câmera aqui… ficava bem ali.” – Fábio aponta para um dos cantos superiores da sala.

“ME TIRA DAQUI!” – Vanessa começa a gritar a plenos pulmões.

“Lembra daquela câmera que eu tinha? Bom, era do seu tio, mas ele nunca usava mesmo. Nem me pediu de volta…”

“O que está acontecendo?”

“A menina… foi sorte. Foi pura sorte. Até dela. Ela estava toda arrumada, saindo de uma festa, bêbada como só. Ela me lembrava você, mesma idade que a sua quando a gente se conheceu… o cabelo, os olhos, a risada… eu nem precisei forçá-la, ela só entrou no meu carro.”

“DEIXA EU SAIR!”

“Quando ela me contou do papai deputado, eu assustei um pouco. Ela chamaria atenção demais, logo ia ter polícia procurando por ela no estado todo. Mas… ela me pediu pra ficar comigo. Não resisti. Passamos uns bons dias juntos, eu, ela e a câmera. Ela era bem desinibida. O melhor vídeo que fizemos foi dela deitada numa banheira, aquela onde a gente adorava ficar, lembra? Ela, toda linda… rostinho de anjo… me contando, sem vergonha nenhuma, tudo o que o papai fazia com ela desde que era só uma criancinha… e o papai deputado fez muita coisa que nem eu acreditava.”

“Eu não quero saber… não me conta…”

“Por isso que ela veio comigo. Acho que ela queria acabar logo com tudo aquilo… mas eu vacilei. Sabe como é, muito parecida com você, eu acabei me apegando. Não tive coragem de matar não. Quis brincar mais algum tempo… mas ela não quis. Não… ela queria ir embora, não só daquela casa, mas da vida. Não impedi… até segurei a mão dela enquanto ela sangrava na banheira, enquanto confessava pelo papai todos os crimes dele…”

“Eu quero ir embora, por favor…”

“Eu enterrei ela no quintal da nossa casinha… coloquei até uma cruz. Espero que ela tenha ido para o céu… até para não encontrar o papai, nunca mais. Ela tinha sofrido o suficiente. Com ela, eu enterrei a fita… agora, me pergunta, você acha que o senhor deputado quer os restos mortais da filha ou aquelas cenas imortalizadas pela câmera do seu tio?”

Vanessa arregala os olhos enquanto nota Fábio se soltando das algemas com tremenda facilidade.

“Aposto que ele já está indo pra lá com seus capangas para desenterrar a fita… o que deixa nós dois… sozinhos, finalmente. Uma mão lava a outra. Agora se prepara, meu amor, porque esse ninho é só nosso até cair a noite…”

Para dizer que adora essas histórias leves, para dizer que a vida é bela, ou mesmo para perguntar de qual partido era o deputado: somir@desfavor.com

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Comments (5)

  • Esses contos estão ficando cada vez melhores! O conto consegue fazer com que o leitor sinta essa aflição repentina sentida pela personagem Vanessa quando dá conta de sua situação, esse “suar frio”. Uma aflição que vem junto com o reconhecimento de que o Fábio deu um golpe de mestre com as peças que tinha.

    Ademais, é brilhante o duplo sentido que o título traz. Primeiro achamos que ele se refere ao suor de nervosismo do primeiro parágrafo, mas só depois nos damos conta do que ele realmente significa.

    Por fim, não acho que seja necessária uma continuação. A genialidade do texto está exatamente aí: em terminar nos deixando aflitos, ansiosos, suando frio.

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