Des Contos: Iluminação.

O dia, até então, não poderia ser mais banal. O sol nascera como de costume, os pássaros cantavam, as pessoas seguiam suas rotinas diárias. Numa movimentada praça de uma grande metrópole, milhares de pessoas seguiam seus caminhos sem tempo de contemplar a intrincada rede de planos, sonhos e motivações que mantinham todas aquelas pessoas em movimento. Todos escondidos na multidão.

Mas aquele não seria um dia banal. Sem aviso algum, um poderoso flash de luz cega todas aquelas pessoas ao mesmo tempo. Não dura mais que um segundo, mas quando cede e devolve a visão aos transeuntes, consegue o feito de parar todo aquele movimento humano e faz as pessoas, atônitas, reconhecerem umas às outras. Era como se, mesmo sem expressar em palavras, todos se perguntassem internamente se haviam sido os únicos a presenciar aquela luz, buscando confirmação na expressão alheia. A resposta evidente nas expressões confusas de todos os presentes.

Uma mulher começa a chamar pelo nome de alguém. Logo, outros chamados se unem ao som do ambiente, em tom cada vez mais desesperado. Muitos não podiam se dar ao luxo de ficar esperando para saber o que realmente acontecera. Mas os que se interessaram pelas pessoas desesperadas começaram a entender uma parte do que acabara de se passar.

Um homem, do alto dos seus quarenta anos de idade, procurava por sua mulher, que desaparecera de seu lado logo após aquela luz. Em um momento, sentia a mão de sua companheira segurando a sua, no seguinte, nada… Pelo menos mais uma dezena de pessoas relatava experiências parecidas num grupo concentrado na área central da praça. Logo, esse grupo alcançou as centenas.

Alertados pelos gritos de algumas pessoas em frente a uma loja de eletrodomésticos, aquela pequena multidão começava a se concentrar em frente a um grupo de televisões ligadas, nas telas, jornalistas revelando que a escala daquela situação era ainda maior do que o imaginado.

Nas horas seguintes, a mídia pintou um quadro mais completo, reportando que o flash ocorrera ao mesmo tempo no mundo todo. E principalmente mostrando as consequências, com cenas de hospitais em estado de caos, aviões caindo, sistemas eletrônicos falhando por todos os lados… Ainda não havia estimativa correta sobre o número de desaparecidos, mas eles estariam passando das centenas de milhões de acordo com relatos do mundo inteiro.

Cenas impressionantes ocupavam os noticiários, como a das ruas da capital norueguesa, virtualmente deserta. O flash parecia ter causado efeitos diferentes em países diferentes, com fortes danos às populações de países ricos, mas poupando muito das Américas e da África.

Países como China e Rússia demoraram mais para soltar relatos oficiais, mas ao final do dia, já se estava contabilizando mais de duas bilhões de pessoas a menos no planeta. Aparentemente sem nenhum padrão ou explicação, aparentemente… Já corria como boato que havia sim uma lógica para que aquelas pessoas sumissem, mas foi apenas quando uma grande rede de notícias americana tomou coragem de mencionar a possibilidade de que apenas ateus e agnósticos tivessem desaparecido que as coisas realmente começaram a tomar forma. O evento recebeu o nome de Iluminação por um veículo de mídia, e o apelido pegou.

Não precisou mais do que uma semana para se reestabelecer as funções dos desaparecidos, embora com certa dificuldade de substituir profissionais muito qualificados nas áreas científicas. As estimativas dos danos imediatos causados à economia pelo desaparecimento de tantas pessoas chegaram à casa das centenas de bilhões, mas os serviços básicos para a população continuaram suficientemente disponíveis.

Já parecia fato confirmado que o que conectava todos os desaparecidos era uma suposta falta de fé em divindades. A comunidade científica sofreu um baque de quase 80% em sua população, esvaziando laboratórios e universidades no mundo todo. Hospitais também sofreram muito nas primeiras horas, mas não demorou muito para voluntários de diferentes graus de conhecimento técnico ocuparem essas vagas, em caráter emergencial.

Os grandes líderes religiosos, inicialmente tímidos, começavam a compreender a mudança na balança de poder na humanidade. Principalmente porque vários dos líderes políticos do mundo haviam desaparecido também.

O cidadão médio estava mais preocupado com as pessoas que perdeu, mas vários grupos religiosos radicais comemoravam efusivamente a sua herança do planeta. Embora alguns levantassem a possibilidade de ficar na Terra como uma punição, a maioria esmagadora começava a entender o ocorrido como uma confirmação divina de que eles sim estavam no caminho certo.

O sistema ainda existia, e o sistema não se desfaz da noite para o dia. Com milhões de vagas de poder disponíveis, a mecânica do funcionamento da humanidade moderna teve poucas alterações no primeiro ano pós-Iluminação. Os grupos religiosos ganhavam poder a olhos vistos, e com uma espécie de confirmação que havia sim alguém olhando por nós e disposto a “apagar” quem não seguisse uma religião, até mesmo em redutos de moderação religiosa as igrejas ficavam lotadas, todos os dias.

Utilizando-se das ferramentas de organização social vigentes, começaram a entrar em vigor no mundo todo leis e mais leis apagando a linha que separava Igreja de Estado. Os primeiros a sofrer foram os homossexuais. Direitos eliminados, sanções legais e até mesmo grandes massacres e perseguições em países mais pobres.

O baque na produção de mídia foi imediato. Cada vez menos conteúdo inédito, cada vez mais e mais horários de pregação e pedidos de doação. As igrejas, desregulamentadas pelo Estado, começavam a empilhar lucros ainda maiores. Uma nova classe de sacerdotes como os maiores bilionários mundiais demonstrava o sucesso estrondoso desse mercado reaquecido pela Iluminação. Uma coisa era ter fé, outra completamente diferente era pagar para continuar vivendo.

E com dinheiro, vem o controle. Primeiro os veículos de mídia, depois as grandes empresas de mineração, combustíveis, alimentação… Líderes de várias denominações religiosas começam a disputar, palmo a palmo, o controle dos recursos que tornam a vida possível no Planeta. E nesse tipo de mercado, experiência faz muita diferença. Lobby se torna coisa do passado, até por questão de praticidade, os novos bilionários religiosos vão se infiltrando na política até que os congressos dos países que ainda não haviam se tornado teocracias estivessem completamente tomados por representantes das inúmeras subdivisões das religiões vigentes nos países.

Todos os projetos de lei buscando equiparação com as escrituras sagradas locais passam. O Estado é mera formalidade. A qualidade de vida começa a despencar, pela falta de formação cultural e incentivos científicos dos novos governos teocráticos. Em vários países, a medicina é banida.

Em uma década, não há nenhuma Constituição intocada no mundo. A maioria delas queimadas em praça pública. Países muçulmanos radicais já vivem em estado de pobreza e violência absurdas, com suas populações femininas definhando ano após ano. A maioria dos países Europeus vai seguindo o mesmo caminho, tomados por massas de imigrantes. Os Estados Unidos já estão divididos novamente, divididos entre cristãos radicais e cristãos ultra-radicais. Na América do Sul, o novo Vaticano (antiga Brasília) enfrenta séria oposição da Nação em Cristo. Nos países asiáticos, o Novo Budismo vai perdendo força para variações do Cristianismo e o Islamismo.

As tensões sobem, mas as coisas realmente saem de controle após o massacre dos Mórmons numa região central da América do Norte. Quatro milhões de fiéis são eliminados por uma denominação cristã rival que conquistou o controle sobre grande parte do maquinário bélico dos antigos Estados Unidos.

O protótipo de guerra civil lança ondas de choque pelo mundo todo.

Cem anos após a Iluminação, a população terrestre volta aos níveis da Idade Média, com o mesmo número de casualidades por violência e doenças registradas naquela época. 95% dos satélites já estão inativos, a agricultura e a pecuária deixaram de ser praticadas em grande escala, mais da metade da área continental do planeta está inabitável por causa da radiação.

Mil anos após a Iluminação, a população terrestre é de duas milhões de pessoas, separadas em grupos esparsos. A maioria nômade e sem nenhuma ideia de como era a vida na época em que aquelas grandes construções, agora ruínas, faziam parte da vista de seus antepassados.

Mil e duzentos e três anos após a Iluminação: Um desses grupos faz sua exploração rotineira numa das antigas metrópoles destruídas. A caça parece gostar de se esconder por detrás daquelas paredes que insistem em ficar de pé. Um dos caçadores avista uma gazela, e se prepara para a perseguição. Mal tem tempo de aprontar a lança quando um estrondo distrai sua atenção e espanta o animal.

Olhando para o céu, percebe um pequeno ponto brilhante, que parece se aproximar em grande velocidade. Por puro instinto, esconde-se detrás de uma construção próxima, ainda observando. O ponto se transforma numa enorme massa metálica, flutuando gentilmente sob o solo.

Um flash de luz e o caçador se vê dentro de uma enorme sala branca, cheias de luzes coloridas. Dois seres a sua frente. Um claramente humano, o outro, nem tanto. Os dois parecem conversar, mas usando sons completamente estranhos para ele.

O humano parece desapontado. O outro, nem tanto.

Mais um flash, e o caçador está de volta. O objeto metálico desaparece com a mesma velocidade que surgiu. Os relatos do caçador para sua tribo começam a se espalhar entre outras tribos próximas, gerando a lenda dos homens vindos do céu.

Dez mil anos depois da Iluminação: O dia, até então, não poderia ser mais banal. O sol nascera como de costume, os pássaros cantavam, as pessoas seguiam suas rotinas diárias…

Fim?

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Comments (9)

  • Acho só que os líderes religiosos também sumiriam.

    Uma das maiores provas que essas coisas não existem é a do comportamento dos líderes religiosos, em especial o da Igreja Chatólica. Afinal, se vc tem acesso poderoso a todos os documentos e a tudo o que realmente aconteceu em épocas passadas, se vc entrou no diacho da Igreja porque acreditava em alguma coisa e se, mesmo com tudo isso, passou a se comportar como se nada fosse te punir e como se não houvesse amanhã, é porque vc decididamente deixou de acreditar. E se eles não acreditam, eu então…

    De qualquer forma isso não mudaria o desfecho do texto… Sempre tem um espertão para dar continuidade aos “trabalhos”.

  • outra coisa que seria interessante também seria o descontos do contrario, se toda a população sumisse e ficassem apenas os ateus, acho que ia dar em merda do mesmo jeito

  • por um momento eu achei que as pessoas que sumissem seriam as “iluminadas” pelo pensamento critico e etc, não muito diferente do que aconteceu né

    • A semana temática acaba hoje, como toda semana temática.

      Amanhã voltamos com a nossa programação normal: Desfavor da Semana

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