Semana Anta: Padecendo no paraíso.

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Semana Anta: É tempo de glórias aqui na República Impopular. O mundo acabou, as pessoas foram mandadas para o Céu ou para o Inferno. E como previsto, só um dos grupos está gostando do resultado…

Inferno, 20 anos após o fim do mundo. Em frente da portaria de um moderno prédio de apartamentos situado na Av. Pol Pot, Sally confere seu relógio mais uma vez, visivelmente impaciente. Alguns momentos depois, a porta se abre exibindo Somir; cara de sono e cabelo desgrenhado.

SOMIR: Tinha que ser tão cedo?
SALLY: Já passa do meio dia, vagabundo!
SOMIR: Mas hoje é segunda-feira…
SALLY: Todo dia é segunda-feira no inferno.
SOMIR: Sacanagem… Aliás, sério que você está de casaco de pele? No inferno?
SALLY: Estou com frio e ninguém me enche o saco por aqui. Win/win.
SOMIR: Bom, vamos então.

Os dois seguem até o carro de Sally, um grande veículo utilitário movido a hidrogênio. No caminho:

SALLY: Não faz barulho nenhum, né?
SOMIR: Ainda bem que desenvolveram essa tecnologia por aqui, com essa coisa do inferno ter teto, a poluição estava ficando absurda.
SALLY: O que aconteceu com o seu?
SOMIR: Eu saí para ver o novo stand-up do Bill Hicks ontem à noite. Encontrei com uns amigos, esticamos naquele barzinho onde o Miles Davies está tocando agora. Depois disso eu não lembro de mais nada.
SALLY: Incrível como sempre tem coisa nova e bacana para fazer de noite aqui no inferno, não? Mas, vem cá… como você chegou em casa?
SOMIR: Sei lá. Acordei vestido e minha bunda não estava doendo. Já estou contabilizando como vitória…
SALLY: Bom, sorte que aqui ninguém vai mexer no seu carro. Daqui a pouco acham. Olha… está mais lotado que o de costume.

Sally estaciona o carro numa rua paralela, Somir retira alguns equipamentos de filmagem do porta-malas; ambos se dirigem então até uma grande praça circular em frente a um gigantesco portão feito de metal retorcido, todo estilizado com motivos demoníacos, pentagramas e números 6. O portão fecha a passagem de uma estrada, única entrada possível no intransponível muro que circunda o inferno.

SALLY: Ô portãzinho brega, hein?
SOMIR: Parece que chamaram o Picasso para refazer. Ele ganhou a concorrência contra o Van Gogh. Está no portal da transparência do governo infernal.
SALLY: Menos mal. Pronto para filmar?
SOMIR: Acerta o seu microfone…

Sally se ajeita, arruma o cabelo e faz sinal de confirmação para Somir, que começa a gravar:

SALLY: Olá! Eu sou Satanally e atrás da câmera está Somefisto. *uma mão passa na frente, acenando para a lente* Sejam bem vindos a mais uma matéria exclusiva da TV República Infernal do Desfavor. O tema de hoje é…

A câmera começa a focar um aglomerado de pessoas do lado de fora do portão do inferno, todas vestidas com batas imaculadamente brancas, sorrisos largos destoando da expressão desesperada nos olhos.

SALLY: … Plantão “Cadê o seu Céu?”.

Sally começa a se aproximar do portão, mantendo contato visual com a câmera:

SALLY: Desde o começo deste mês, começaram a se acumular aqui na frente dos portões de nossa sociedade infernal um número cada vez maior de refugiados do “paraíso”… *fazendo aspas com os dedos*

Ela para novamente, a câmera se aproxima de seu rosto:

SALLY: A pergunta que não quer calar é… Que que esses paunocus estão fazendo aqui? Eles não deveriam estar felizes e contentes por estar vivendo ao lado de seu deus? Hoje nós vamos pesquisar mais a fundo o que há de podre no reino dos céus…. Conseguimos uma autorização especial para sair e fazer algumas entrevistas com essas ovelhas desgarradas.
SOMIR: Bendita lei de liberdade de expressão irrestrita.
SALLY: Amém! Vamos…

Sally e Somir seguem até a guarita situada próxima ao portão. Dentro dela, uma imponente figura demoníaca parece compenetrada na leitura de uma apostila de filosofia.

SALLY: Oi?
DEMÔNIO: Pois não?
SALLY: Nós temos uma autorização para sair e entrevistar os refugiados, você poderia abrir o portão para a gente?
DEMÔNIO: Deixa eu conferir aqui no sistema… Pronto! Confirmado.
SOMIR: Eu ainda me impressiono como não tem burocracia por aqui.
DEMÔNIO: Desde a revolução as coisas melhoraram muito. Acredita que eu precisava achar passagens de escrituras sagradas que condenassem os que entravam aqui, TODA VEZ que chegava alguém? Vocês inventaram umas dez mil religiões diferentes! Algumas escrituras só estavam impressas em pedras… Era uma trabalheira.
SALLY: Sobra até tempo para estudar agora, não?
DEMÔNIO: Ha… isso? *pegando a apostila* Estou me formando em Filosofia semestre que vem. Pegar um cargo melhor, sabe? Adorei esse novo plano de carreira!
SALLY: Olha só, ser promovido por se formar em Filosofia!
SOMIR: Graças ao diabo!
TODOS: Hahahaha…

O demônio aperta um botão, abrindo os portões. Sally e Somir se despedem. Alguns dos refugiados celestes tentam entrar, mas são impedidos por uma barreira de luz.

SALLY: Ninguém mandou se arrepender!
SOMIR: Bom, minha gente. Estamos fazendo uma matéria sobre a situação de vocês para um importante canal de televisão do inferno.
SALLY: *olhar confuso*
SOMIR: *sussurando* Eles acreditam em qualquer merda, relaxa.
SALLY: Você, do decotão. Vamos ganhar alguns pontos no ibope… Somir, filma aqui.

A mulher se desvencilha da multidão, posicionando-se ao lado de Sally no foco da câmera.

SALLY: Seu nome, por favor.
MULHER: Mimi Moranguinho.
SALLY: … Próximo!
SOMIR: Calma, calma!
SALLY: Hmpf… Imagino que esse seja seu nome artístico.
MIMI: Isso! Eu era assistente de palco de um programa famoso no Brasil. Saí até na Playboy!
SALLY: Fascinante. Longe de mim ser moralista, mas você não me passa a impressão de quem não entraria nem num vídeo de Youtube sem fazer teste do sofá… Como você foi parar no Céu?
MIMI: Eu era meio evangélica… e fiz uma cirurgia de reconstrução do hímen uma semana antes do juízo final. Não tinha dado nem tempo de…
SOMIR: Dar.
MIMI: Hihihi… isso. Só sei que depois que tudo acabou, eu acordei numa sala cheia de freiras, barangas e ativistas dos direitos dos animais. Um anjo nos disse que nós fomos exemplos de castidade em vida e teríamos um lugar especial no Céu. As freiras me olharam feeeeeio…
SALLY: Mas ninguém verificou que não era original de fábrica?
MIMI: Não. Mas eu também não abri o bico, estava indo pro Paraíso! Achei que estava na vantagem…
SALLY: Mas não estava?
MIMI: Não mesmo. Sabe quando aqueles homens bomba barbudos dizem que vão ter setenta e duas virgens no Céu? Adivinha pra quem sobra?
SALLY: Você virou escrava sexual?
MIMI: Eu sempre achei que essa coisa de religião não era muito justa com as mulheres… Precisa vez a briga que foi para decidir qual mártir ia ficar comigo no seu harém. Ninguém… NINGUÉM me perguntou se eu queria!
SOMIR: Então a felicidade do Céu é um embuste?
MIMI: Mais ou menos… eu estava puta da vida com essa história, me passaram para um velho horroroso que eu acho que era líder religioso em vida… Todo mundo achou suspeito, mas vá lá… O pior é que ele era nojento, mas eu não conseguia dizer não, não conseguia nem fazer cara de quem não estava gostando. Quando você vai para o Céu, tem que estar feliz, sempre. Querendo ou não querendo…
SALLY: Por isso esse sorriso besta na cara?
MIMI: É estranho. Eu estou sempre me sentindo bem, disposta e feliz, mesmo que dentro da minha cabeça esteja tudo ao contrário. Deixa a gente meio maluca!
SOMIR: Não enche o saco ficar feliz o tempo todo?
MIMI: É uma tortura. E não acontece NADA de diferente por lá. Todo dia, a mesma coisa. Todo dia… todo santo dia… Gente chata cantando musiquinhas de louvor, pessoas dançando de mãos dadas, flores, coelhinhos… aquela MERDA de Harpa! Até a comida enjoa depois de um tempo.
SALLY: Que horror.
MIMI: Eu não aguento mais. Eu aceito fazer qualquer coisa para sair de lá.
SOMIR: Qualquer coisa? *baixando a câmera*
SALLY: Somir!
SOMIR: Ei, estou tentando ajudar.
MIMI: Meu reino por uma trepada mais ou menos. Promete que vai virar para o lado e roncar?
SOMIR: Melhor… hoje estou usando minha cueca furada! Adoro mulher com expectativas baixas.
SALLY: Argh… A imagem mental…
SOMIR: Bem-vinda ao inferno!

Sally e Somir terminam a entrevista com direito a dancinha de Mimi como encerramento. Os dois voltam pelo portão, conversando:

SALLY: Sabe, ela era uma anta, mas eu não deixo de me sentir mal com a situação dela.
SOMIR: É, mas ela quis ser esperta e omitiu uma informação essencial dos fiscais lá de cima.
SALLY: E daí que ela não era virgem?
SOMIR: Não, isso não é ponto. Nós fazemos parte de uma sociedade onde regras ridículas como essas não valem, mas ela sabia no que estava se metendo… eles não falam tanto de valores da família, moralidade e essas babaquices?
SALLY: É, eles nunca são coerentes… Mas você sabe que eu tenho um ponto fraco pra gente burra.
SOMIR: Eles dormiram com o porco, como você sempre diz.
SALLY: Mas eles não merecem uma segunda chance? Nós somos o lado decente aqui… temos uma responsabilidade.
SOMIR: Vinte anos é um peido perto do que eles atrasaram a sociedade. Eles que aguentem pelo menos mais uns mil anos com o carentão lá de cima…
SALLY: Já sei… vamos fazer um “Ele disse, ela disse” sobre esse assunto lá na RID. Vantagens de todo dia ser segunda-feira!
SOMIR: Taí, gostei.

CONTINUA

Para dizer que depois de hoje ser mandado para o inferno vai ter uma conotação diferente para você, para dizer que é mulher e se caga de medo da religião estar certa, ou mesmo para especular sobre o que aconteceu com o meu c…arro na noite anterior: somir@desfavor.com

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