Esquentado.

Após décadas de controle implacável sobre uma republiqueta tropical, Orlando Gutierrez pereceu calmamente sobre lencóis de seda, em sua mansão predileta às margens do Atlântico. O abraço da morte veio suave, diferentemente das milhares de vítimas de sua longeva ditadura. Fechou os olhos pela última vez como se estivesse caindo num pesado e merecido sono depois de um longo dia.

Mas, para sua surpresa, a visão reforma-se, sabe-se lá quanto tempo depois. Ao seu redor, uma grande caverna, teto e paredes iluminadas pelo vermelho do magma que borbulhava num lago central. O cheiro era de enxofre. Católico suficientemente praticante, Orlando sabia muito bem que seus atos em vida poderiam ter tal consequência. Decide aceitar seu destino feito homem, enojado pelo choro desesperado de tantos outros que surgiam em suas proximidades e rapidamente percebiam que seriam punidos pela eternidade.

Homens e mulheres de todas as idades materializavam-se numa nuvem de fumaça negra, inclusive, para a surpresa de Orlando, algumas crianças. Pelo ritmo de novas chegadas ali, presume que deve ter alguma saída, senão aquela caverna estaria lotada até o teto de amaldiçoados. Desvencilhando-se de agarrões daqueles procurando algum conforto ali, consegue encontrar um caminho até a extremidade da caverna, circundando o ambiente. Percebe o fluxo de pessoas atravessando uma galeria distante, mas parecia haver ordem ali, alguém estava organizando uma fila.

Um homem, ou algo muito parecido com isso, parecia anotar algo num pesado bloco de notas ao escutar as lamúrias daqueles que passavam em sua frente. O homem tinha sim a pele vermelha e escamosa, além de chifres pontiagudos, mas não era tão imponente como imaginara em vida: o corpo franzino era pontuado por uma grande barriga, e embaixo de cada chifre um tufo de cabelos negros, evidenciando avançada calvície. Expressão cansada, mal olhava para aqueles que pediam clemência à sua frente.

Orlando aproveita-se da situação caótica para se posicionar bem mais à frente na fila do que deveria. Uma senhora sente o empurrão e volta-se para ele, olhos vermelhos e inchados. Apesar da falta de reação dele, ela começa seus lamentos. Diz que era muito religiosa, que estava na igreja praticamente todos os dias, que doava para a caridade e até cozinhava para o padre da paróquia. Estava esperando para falar com algum responsável porque acreditava que aquilo era um engano. Orlando responde com um sorriso irônico.

Como cada pessoa que passava pelo homem vermelho parecia falar por um bom tempo, Orlando perde a conta das horas esperando por sua vez. Faltava apenas a suposta carola para ser atendida antes dele, mas, considerando o quanto ela havia falado virtualmente sozinha no tempo todo que esperou na fila, ele decide que não gostaria de esperar mais tanto tempo até aquela mulher gastar suas desculpas esfarrapadas. Com um sutil empurrão, ele a desequilibra para fora da fila e toma seu lugar. Os gritos dela confundem-se com os de desespero de tantos outros ao redor, tornando o crime perfeito.

O demônio sinaliza a vez de Orlando com um rápido movimento do dedo. Ele aproxima-se, notando imediatamente que nos arredores daquele ser, a cacofonia de gritos e choros silenciava-se.

DEMÔNIO: Nome?
ORLANDO: Orlando Sebastian Gutierrez
DEMÔNIO: Orlando… ok. Você tem algo a declarar antes de ser condenado à eternidade no Inferno?
ORLANDO: Não me arrependo de nada. Fiz o que fiz pelo meu povo, e a história há de me reconhecer como verdadeiramente fui.
DEMÔNIO: Então você não quer ir pra lista de revisão?
ORLANDO: Bom… eu nem sabia que tinha uma. Existe uma chance de ir parar no céu ainda?
DEMÔNIO: Talvez, mas eu não teria pressa se fosse você.
ORLANDO: Eu fui ensinado que o julgamento de Deus era infalível.
DEMÔNIO: Deveria ser… se ele aparecesse pra trabalhar.
ORLANDO: Pois não?
DEMÔNIO: Ah, vou te colocar na lista de revisão de qualquer jeito. Gente, gente! Hora de almoço, volto logo.

A massa de condenados protesta, mas o chifrudo nem dá bola.

ORLANDO: E agora, acontece o quê?
DEMÔNIO: Vem me acompanhando, estou indo pra lá mesmo.

Orlando concorda e vai seguindo o demônio por uma estreita galeria.

ORLANDO: Você disse que Deus não veio trabalhar hoje?
DEMÔNIO: Não, ele nunca veio. Foram aqueles sete dias e só.
ORLANDO: E como o céu e o inferno estão funcionando?
DEMÔNIO: Não tem céu.
ORLANDO: Como assim?
DEMÔNIO: Quer dizer, pra não dizer que não tem nada nada, tem as fundações. Botaram o portão, algumas nuvens, mas o resto ficou parado.
ORLANDO: Então não importa o que você faça em vida, vem pro inferno?
DEMÔNIO: É… mas nem deveriam.

A galeria termina num salão incomensuravelmente grande, com alguns quilômetros de pedras e magma pontuando a paisagem, mas um grande vazio ocupando todo o horizonte.

DEMÔNIO: Olha só, aqui a coisa avançou mais. Mas mesmo assim, não deu nem 1% da obra completada. Daquelas pedras pra frente não tem mais nada.
ORLANDO: E todo mundo que já morreu veio pra cá?
DEMÔNIO: Sim. Sabe há quantos milênios eu não tenho férias?
ORLANDO: Todos?
DEMÔNIO: O problema é que do vazio pra frente eu não tenho nem ideia de até onde vai, o povo entra praquele lado e se perde. E depois de algum tempo, todo mundo acaba indo pro vazio.
ORLANDO: Nem você sabe o que tem lá?
DEMÔNIO: Você viu o tanto de gente que eu tenho que receber? E enquanto não terminam a obra do céu, eu tenho que ficar anotando os nomes para revisão, eu realmente acho que pelo menos metade das pessoas que estão aqui não mereciam.
ORLANDO: Bom, pensando bem, eu ajudei bastante os mais pobres.
DEMÔNIO: É… se eu fosse você, não teria muitas esperanças. Talvez você seja perdoado pelas mortes, mas as torturas não vão descer bem.
ORLANDO: E eu vou ser torturado por aqui?
DEMÔNIO: Idealmente, sim. Mas estou sem equipe.

O demônio senta-se numa pedra mais achatada, e puxa o que parece ser uma marmita. Orlando começa a olhar para o horizonte negro.

ORLANDO: E por que você não termina de construir aqui?
DEMÔNIO: Seria impossível.
ORLANDO: Você tem mão de obra quase que infinita e não precisa pagar salário.
DEMÔNIO: Mas eles estão aqui para serem punidos, pelo menos em teoria.
ORLANDO: Carregar pedra e fazer piscinas de lava me parece uma punição boa.
DEMÔNIO: Mas isso só ia escancarar que não tem estrutura nenhuma aqui.
ORLANDO: Diz para eles que é assim que Deus julga as pessoas, que o trabalho dignifica e aqueles que se esforçarem mais podem voltar para o céu.
DEMÔNIO: O que nós sabemos que não é verdade.
ORLANDO: Deus trabalha de formas misteriosas.
DEMÔNIO: Você é bom…
ORLANDO: Não quer que eu supervisione? Você faz o seu trabalho de receber os danados, eu boto eles para fazer um inferno espetacular.
DEMÔNIO: Bom, eu tinha mesmo algumas ideias do que fazer com o lugar.
ORLANDO: Eles podem me chamar de “O Arquiteto da Salvação”.
DEMÔNIO: Sim!
ORLANDO: Serei duro, porém justo. Cruel com os inimigos, mas caridoso com os amigos. Sob o meu comando, faremos um inferno do povo, para o povo!
DEMÔNIO: Está contratado!
ORLANDO: Conte do nosso projeto para todos que passarem por você, e digam para falar comigo. Juntos tornaremos o inferno grandioso!

Vários anos se passam. Orlando, ou, o Arquiteto da Salvação, expande o inferno para além do horizonte, usando a mão-de-obra de milhões de almas desesperadas por redenção para construir monumentos, ruas, praças, estátuas do demônio e até algumas de si próprio. Programas de tortura voluntária prometem encurtar o tempo de espera no inferno em alguns milênios da eternidade, com impressionante adesão.

O demônio tira férias, finalmente.

Para dizer que não gosta de história sem twist, para dizer que agora sabe que deus é brasileiro, ou mesmo para dizer que qualquer semelhança com ditadores vivos ou mortos é mera coincidência: somir@desfavor.com

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