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Precisamos falar sobre ídolos.

Precisamos falar sobre ídolos.

| Sally | | 22 comentários em Precisamos falar sobre ídolos.

O conceito mais difundido de idolatria é adorar a um deus ou uma pessoa, de forma irracional, onde se projeta neles todas as suas expectativas, fazendo dela o objeto da sua adoração e condicionando sua felicidade de alguma forma a ela. Mas, idolatria vai vem além. Podemos idolatrar basicamente qualquer coisa, e o que idolatramos diz muito sobre nós mesmos – e também sobre nossos pontos fracos, pois aquilo que você idolatra é o que mais pode te ferir.

É agradável pensar que quem idolatra são os outros, um grupo de pessoas intelectualmente prejudicadas que adoram um Deus ou um cantor a ponto de viver sua vida em função deles, tomar decisões pensando neles, projetar seu futuro sonhando com eles. Esta idolatria mais rasteira é vista como a única que existe, mas não é verdade. Você e eu idolatramos também e às vezes nem tomamos consciência disso, o que é péssimo, pois não nos permite trabalhar essa questão e desfazer a idolatria.

Para piorar, ainda existe um aval social para idolatrar certas coisas e pessoas, onde não há qualquer reprovação, muito pelo contrário, há aplausos e uma presunção de que você é uma boa pessoa. Um exemplo clássico (e perigoso) é a idolatria das mães pelos seus filhos, principalmente quando são pequenos. Dificilmente alguém vai ter coragem de te dizer (ou dizer para si mesmo) que isso não é bom, não é saudável, e é nocivo para todos os envolvidos.

Não estou dizendo que mães devem ignorar seus filhos, mas existe um mundo de distância entre ignorar e idolatrar. Convencionou-se que idolatrar pode ser sinônimo de amar (spoiler: não é, idolatria faz mal) e mães que idolatram seus filhos, cuja felicidade está atrelada à felicidade dos filhos, que vivem em função deles, que anulam sua vida por eles, que só se interessam por ele na vida, são consideradas boas mães e aplaudidas.

Não é bom para a mãe, não é bom para o filho, mas, como é cômodo e gera um ganho secundário enorme (a mãe não precisa se preocupar com mais nada: ter uma carreira, ser atraente, estar atualizada, etc) a sociedade abraça numa boa e aplaude. As pessoas se afastam? A vida fica empobrecida? Os casamentos desmoronam? A criança fica sufocada e com comportamentos que são um pedido de socorro? Sim, mas quem idolatra escolhe não olhar para isso. A pessoa que idolatra escolhe se ver como uma heroína que faz tudo pelo filho, isso só pode ser bom.

Idolatria também pode recair sobre abstrações: uma profissão, um cargo, um ofício ou uma função. Uma das coisas que mais me dá embrulho no estômago é quando conheço alguém (pessoa comum mesmo, não um encontro), pergunto quem é a pessoa e ela se define pela profissão: “Eu sou advogado”, “Eu sou engenheiro”, “Eu sou bombeiro”. Não, meu anjo, você é muito mais do que isso. Isso é um trabalho que você exerce, quiçá temporariamente, que nem de longe define o que você é. É uma pequena parte do que você é. E se não é uma pequena parte do que você é, você está com problemas.

Se a sua profissão define quem você é, hora de repensar sua vida, pois você é (ou tem potencial para ser) muito mais do que isso. Se a ideia de ser impedido de exercer sua profissão te desespera, hora de refletir se você não está idolatrando algo que não merece tanto prestígio e que é extremamente volátil: amanhã, por uma série de motivos, você pode não estar mais exercendo. Amanhã você pode estar incapacitado para fazer isso ou o que você faz pode nem existir, pode ter sido substituído por um robô ou por uma técnica ou por uma empresa que faça totalmente diferente (e melhor) do que você.

Quando se está na idolatria, se presume que aquilo que é idolatrado é eterno, imutável, onipresente. Spoiler: não é. Se agarrar com unhas e dentes e passar uma vida cultuando algo que pode ruir (spoiler: tudo externo a você pode) é pedir para sofrer, mais cedo ou mais tarde. Não afronte a impermanência desta forma, uma hora ela chega e chacoalha a sua vida. Tem que ser mesmo muito idiota de fazer um contrato de se apegar e dedicar tanto assim a algo que pode ruir, quem faria uma imbecilidade dessas? Nós, seres humanos.

E em alguns casos é notório que aquilo vai ruir, e mesmo assim, muita gente direciona sua idolatria para aquilo. Um exemplo clássico: idolatria pela juventude, pelo corpo, pela beleza. Alguém aqui acha que não vai envelhecer? (spoiler: vai)

No entanto, vemos muita gente brigando desesperadamente contra o tempo, fazendo inúmeros procedimentos estéticos, gastando rios de dinheiro, passando por pós-operatórios dolorosos e até tentando levar uma vida ou rotina de adolescente para tentar retardar algo que inevitavelmente vai alcançá-los. Percebem que é um jogo onde a gente já entra perdedor? O ser humano e essa mania idiota de resistir ao que é.

E, não se enganem, o objetivo deste texto não é criticar “os outros”. Todos nós temos idolatria apontada para algo em nossas vidas. Os outros que se fodam, se querem levar uma vida merda com inúmeras frustrações à espera, problema deles. O objetivo deste texto é induzir uma reflexão de onde está a idolatria na SUA vida e tentar desfazê-la. Hora de entender que idolatria nunca é algo bom, por mais que a sociedade avalize. Queira distância do que uma sociedade doente aplaude.

E desfazer idolatria não é algo fácil. São décadas de uma forma de funcionar, são caminhos neurais mais do que viciados para ir sempre para aquele ponto. Na maior parte das vezes o que se consegue é tirar a idolatria de um ponto e colocá-la em outro. Não adianta nada, é trocar seis por meia dúzia. Por mais que um ponto seja mais aceitável que o outro (ex: tirar idolatria da bebida ou da pornografia e colocá-la em um Deus), o erro primordial persiste e ele vai te gerar muito mal estar a longo prazo.

Para entender e se livrar de vez da idolatria, é preciso mergulhar profundo em si mesmo e compreender de onde ela vem, a que propósito ela te serve, quais são os ganhos secundários que ela proporciona. Você mergulha muito no trabalho por solidão ou inaptidão social? Você adora um Deus pois ele te impede de fazer coisas ruins que você faria se não fossem proibidas por ele? Você casou por medo da solidão?

Não importa o motivo, se há idolatria, cedo ou tarde vai ruir e gerar muita infelicidade, pois ali a pessoa depositou suas mais altas esperanças de felicidade. Fazer este depósito em uma mentira (ídolos não existem, pessoas ou coisas capazes de garantir sua felicidade não existem) é a receita para infelicidade e frustração, é como assistir a um acidente de carro em câmera lenta, todo mundo percebe a desgraça que vai acontecer, menos quem está ao volante.

Sim, você pode gostar do seu trabalho, do seu casamento, dos seus filhos ou do que mais você quiser. O que não pode é colocar neles ou em qualquer coisa a razão da sua felicidade, a motivação da sua vida, seu propósito. Não coloque nada externo como a razão da sua felicidade, pois qualquer coisa externa é mutável, é finita, é perecível. Se ela acabar, você vai ficar na merda.

Idolatria é uma forma muito infantilizada de preencher um vazio interior, uma carência, um medo. E não funciona, muito pelo contrário, por mais que dê um alívio temporário, quando a queda vem, ela é maior. Pessoas são despedidas, filhos saem de casa, casamentos terminam. Não aposte todas as suas fichas em algo externo, aposte-as em você mesmo e na sua evolução pessoal.

Mas aí surge um impasse: quem precisa de ídolos, no geral, tem autoestima baixa e fatalmente vai pensar que apostar em si mesmo é a maior furada. E essa é uma questão fundamental a ser trabalhada: enquanto você não reconstruir sua autoestima, vai pular de um ídolo para o outro, seja ele uma cantora pop, um esporte, o sonho de ser famoso, um cachorro, um casamento, uma promoção, um carro ou qualquer outra coisa externa a você.

A idolatria revela de forma nua e crua o buraco que a pessoa tem e não consegue preencher. E o mais cruel é: a pessoa acha que o preencheu com seu ídolo, mas, como tudo que é externo em algum momento ele se desfaz, deixará a pessoa com a sensação de que o mundo é um lugar horrível e que esse buraco, essa dor, essa falta que ela sente não podem ser preenchidos com nada, afinal nem com _____________ (preencha com o ídolo escolhido) ela conseguiu se sentir plena.

Aí vem a depressão, a angústia, a síndrome do pânico, o desânimo, a descrença, o alcoolismo, o vício em drogas, o vício em pornografia, o hábito de dirigir em altíssima velocidade ou colocar a visa em risco de outras forma e tantos outros sintomas. A pessoa foi ensinada toda a vida que se ela perseguisse certos ídolos encontraria a felicidade (família, filhos, dinheiro, sucesso, etc). A pessoa rala feito uma filha da puta e dedica toda sua vida a chegar lá, para colher rua recompensa e, quando chega… fail. Ela não está feliz.

Isso quer dizer que a felicidade não existe? Não senhores. Ela existe sim, eu posso assegurar. Isso quer dizer que nós, seres humanos, perdemos muito tempo procurando a felicidade nos lugares errados. E não é culpa nossa, isso nos é incutido (ainda que na melhor das intenções) por família, amigos, colegas e por toda a sociedade. Todo mundo tem ídolos, então, deve ser esse o caminho, certo? Errado. Todo mundo está infeliz, mas convencionou-se não falar sobre isso, apenas postar fotinhos mentirosas no Instagram.

Então, antes de mais nada, é preciso um processo de desconstrução de tudo que você achava que era verdade. Buscar a felicidade fora de você pode ser o mais pedido no mundo, mas é um beco sem saída. Se você acha que vai ser feliz quando casar, quando tiver um namorado, quando comprar um apartamento, quando tiver filhos, quando for rico, quando comprar um carro, quando for promovido, quando for magro, quando acontecer qualquer coisa externa a você, Tia Sally está te poupando de uma longa jornada inútil e te avisando: não vai. Não é esse o caminho.

Foda acreditar, né? É uma maluca que você nem conhece a cara dizendo algo que toda a sociedade contraria. Tá tudo bem, mesmo que você opte por não acreditar em mim (idolatria é de fato algo muito difícil de soltar), ainda assim, este texto terá cumprido sua finalidade.

Quando, muito mais para frente, você alcançar o que quer que seja e, ainda assim, não se sentir feliz, você vai lembrar de mim e de fragmentos deste texto. E, quando isso acontecer, você saberá que não é a felicidade que não existe, foi apenas você que procurou no lugar errado. Isso faz toda a diferença, afinal, quem é que quer viver em um mundo onde a felicidade não é possível, não é alcançável, não existe? Triste demais. É isso que faz com que as pessoas caiam e fiquem na tarja preta até o fim de suas vidas.

Porém, se você lembrar de mim e lembrar que eu estou te assegurando que a felicidade existe, só que por outro caminho, você não vai cair com a cara na lama e ficar ali, sem esperanças. Obviamente, é um baque perceber que passou boa parte da sua vida perseguindo algo que não estava lá, mas também é um sopro de esperança saber que a felicidade existe sim e que tem uma maluca de um blog aleatório segurando uma plaquinha que aponta para a direção certa.

Para aqueles a quem eu puder poupar uma vida de buscas vãs e decepções, melhor ainda. Não entrem em um beco sem saída. Qualquer ídolo é incapaz de levá-los à felicidade, no máximo, vai gerar uma euforia temporária. Felicidade é algo duradouro, estável, permanente. Algo que talvez a maior parte das pessoas nunca tenha sequer experimentado, por isso confunde com euforia. Talvez euforia seja o único sentimento gratificante que conhecem.

Todos nós temos ídolos a descontruir. Todos nós colocamos idolatria em algo, eu inclusive. É um processo essa desconstrução, por isso, sugiro que pratiquem o desapego e comecem o quanto antes, para não perder mais tempo da sua vida. Não, você não vai “perder” nada abrindo mão de ídolos, essa euforia não é saudável, deixá-la ir é um ganho. Não, não vai ficar um buraco onde estava o ídolo, pois você não vai mais precisar dessa muleta.

Ídolos são muletas, são um hábito ruim que a sociedade nos ensina, que enraízam na gente ainda crianças. Por isso demora para que consigamos nos desvencilhar deles e pode ser um pouco doloroso. Mas, acreditem, quanto antes se faz, menos tempo se perde e menos doloroso é. Como está, na base da idolatria, da euforia, de colocar como pilar coisas que acabam ruindo, é visível que não dá certo. Olhem à sua volta, como está a sociedade, e me digam se é saudável.

Repito: todos nós temos ídolos, mesmo o mais ateu dos seres humanos. Alguns os mantém em lugares óbvios, como um amigo imaginário para o qual rezam todos os dias e fazem pedidos ou como uma pessoa famosa na qual projetam tudo que queriam ser a não são. Outros escondem os ídolos em lugares menos evidentes: comida, aparência física, poder, escapismo, bens materiais, status e tantas outras furadas.

E todos nós, cedo ou tarde, vamos ter que aprender a desconstruí-los e viver uma vida sem eles. Quanto antes, melhor, menos tempo você perde em um caminho que não leva a lugar nenhum. Guarde este texto, um dia ele pode ser útil para que, quando seu ídolo ruir, você lembre que há outro caminho e que sim, a felicidade está lá esperando por você.

Para ficar com raiva e defender ainda mais seu ídolo (normal), para ficar com raiva e dizer que eu só penso assim pois não tenho um ____ (complete com seu ídolo) ou ainda para voltar em alguns anos e dizer que eu tinha razão: sally@desfavor.com


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